Tenho-me em muitos lapsos e em memórias de histórias que me contam sobre mim. Aliás, foi em uma dessas minhas desventuras que eu perdi meus sapatos, atordoado pela ketamina e ludibriado pelo não-contar das horas, por que não? Na época me recordo de estar fugindo da noção espacial e convencional do tempo — em segundos, minutos, dias, etc. — e recordo-me de ter conseguido chegar a me perder nos meses. Não era delirante, senão em seu âmbito acadêmico, uma pesquisa que visava justamente a desinformação. Raras foram as vezes em que voltei a passar tanto tempo sem olhar para manchetes de jornais e sem saber o que acontecia ao meu redor. Mas foi nessa época que eu percebi que não fazia a menor diferença. Fora os entorpecimentos usuais, passava bastante tempo em casa, à deriva social. Levei a sério o experimento. Pedi para os meus companheiros de bar que me contassem apenas o que fosse estritamente necessário para a minha vivência, salvo calamidades públicas de ordem superior. Meu cotidiano não mudou e eu não me senti mais deslocado do que nos lugares aos quais eu me realoco. O tempo livre, por ouro lado, esticou-se. Sem que eu precisasse desgastar-me aprendendo sobre um universo que, com ou sem mim, permanecia em processo lento — imperceptível, eu diria — de transformação, minha barba crescia e apara-la tornou-se um hábito agradável. Eu pude dar atenção total a mim, à minha aparência e ao meu psicológico agora que o tempo não me convinha. Fui ficando mais bonito, acredito eu, mas pode ser ilusão da minha cabeça. No geral, comi melhor, me exercitei mais e me entorpeci menos. Ainda assim, mais do que o suficiente.
Quando voltei ao presente, haviam passado-se cinco meses e meio. Nada mau. Alguns relacionamentos próximos haviam sido deixados pra lá, outros nem mesmo me vieram à memória senão muito depois da minha recobrada de medida. Percebi que, bem ou mal, estamos mais sozinhos do que pensamos e apenas fazemos o suficiente para fugir dessa realidade pouco tragável. Não estamos assim por obrigação, por assim dizer: gostamos de estar. Duvida? Pois lhe dou o exemplo dos ônibus, onde sentamos cuidadosamente distantes um do outro para evitar um contato maior com alguém "que, até onde sei, pode ser um maníaco ou coisa pior". A verdade é que precisamos de espaço. Preservamos lugares relativamente arejados, embora passemos a maior parte da vida em cubículos. Mas gostamos dos cubículos também, talvez justamente por essa mesma causa.
É engraçado o que se percebe quando se olha pro lado contrário ao da percepção: não existe lado contrário. Em todo lugar, a todo momento, existe algo novo a ser descoberto ou transformado. Hoje escrevo sob um diferente ângulo à respeito da imortalidade: a considero sábia, porém perigosa. Ontem era só perigosa e amanhã poderá ser alguma coisa a mais. Ou a menos, por que não? Para todos os efeitos, porém, é preciso fazer duas considerações. A primeira é um tanto óbvia, mas ainda de suma importância: o homem faz o relógio, não o contrário. A última, que a realidade é uma amiga da qual nenhum de nós deve perder total contato por muito tempo.
Duvida?
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