terça-feira, 1 de outubro de 2013

O Pássaro.

Quando eu era menor, morando na casa da minha avó, havia um pássaro.
O pássaro era de um tio louco, e o coitado vivia piando cada vez mais alto por comida, ecoando pela casa velha e gasta.
Infelizmente, para o pobre coitado, minha paciência já estava velha e gasta, apesar da minha idade. Eu era o que passava mais tempo na casa, portanto, o que mais tinha que aturar a terrível criatura suplicando por um punhado de atenção e sementes. Um belo dia, com dor de cabeça, parei bem perto do animal e me perguntei se ele sentia medo. Não havia qualquer reação que me fizesse crer que sim, então decidi fazer uma experiência. Com um objeto pontiagudo - talvez um lápis, não me lembro ao certo - fiquei tentando acertar o animal. Não foi uma atitude nobre, admito, mas o silêncio que se seguiu sufocou qualquer possível protesto da minha consciência. Agora aquele pássaro me temia. Não fazia diferença se ele sentia vontade de piar, contanto que não o fizesse mais na minha frente.
Diferente do amor, o medo não dá brechas para erros ou reclamações. O medo tira a voz, tira a luz. Lá estava eu, com algum simples graveto na mão, silenciando a mais terrível besta que tinha como fraqueza meus tímpanos. Seria tão desumano afinal, se é em legítima defesa?
Os dias seguintes foram a mesma coisa, mas o que é bom dura pouco, e assim foi a minha satisfação. Ele parou de temer o objeto de antes e voltou a piar mesmo depois das minhas ameaças de dor. Não queria machucar o pobre coitado, mas ele não me deixava outra escolha. Era ele ou eu. Não poderia enfrentar seu dono, pois sou para ele o que o pássaro é para mim: um incômodo. Como poderia eu acusar criatura irracional de maldade, se ao fazê-lo estaria me igualando a ela? Não poderia e não o fiz. peguei outro objeto - dessa vez um pedaço de metal que encontrei atrás de um móvel - e o acertei no olho. Não foi minha intenção, mas não pestanejei quando o fiz. O prisioneiro soltou um pequeno grito, mas depois voltou a se calar. Não o deixei cego, se é o que está pensando. Mesmo eu, com minha imaculada consciência, não seria capaz de tal feito - ou seria?
O fato é que o demônio alado voltou a cantar sem tom mais uma vez, e tive que acertá-lo novamente. Não sei se esperava que ele se calasse pra sempre, minha esperança é de que ficasse deprimido e acabasse morrendo, mas continuava a torturá-lo. Afinal, era isso que ele estava fazendo comigo, não Conscientemente ou não, me colocava numa posição de encarcerado dentro da minha própria casa. Me levava à loucura e me fazia duvidar de meus próprios sentidos mesmo que isso prejudicasse a ele. Crueldade? Não, não vejo assim. Não por parte dele e nem pela minha. Sei que se houvesse alguma vantagem em me matar, certamente ele o desejaria, então não vejo por que não ansiar pelo fim do mesmo. É só uma questão de poder. No mundo animal, não é por malícia que o leão caça o javali. Tenho certeza, ainda, que se não fosse pela alimentação, garanto que ambos conviveriam em paz, e assim é a minha relação com o pequeno pássaro: se eu fosse surdo ou ele mudo, nossos caminhos não se cruzariam de maneira menos pacífica do que a de dois vizinhos que se esbarram em um elevador.
Por fim, acabei me mudando daquela casa infeliz antes que meus pequenos delitos pudessem ser notados - para sorte minha e dele - e nunca mais retornei àquele lugar. Quando imagino, porém, quantos gritos mais deve ter dado o antes de finalmente sucumbir à fome e á idade, me arrependo de não tê-lo matado quando tive chance.

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