domingo, 4 de dezembro de 2016

Felícia.

Eu sofro de amnésia. Não é como se eu esquecesse de tudo, mas também não lembro nada. Às vezes uma pessoa passa por mim na rua e me pergunta como eu estou, mas nunca sei se conheço essa pessoa. Falo despretensiosamente, mas algumas vezes a pessoa me pergunta se eu já esqueci dela.
Por conta da minha condição, eu nunca sei pra quantas pessoas eu já contei sobre esse meu problema.
Um dia desses, conheci uma mulher na cafeteria ao lado do apartamento onde eu moro. Ela me disse que o nome dela era Felícia. É um bom nome. Conversamos sobre as mais diversas coisas, sobre as nossas vidas e tudo ao redor delas. O que eu não lembrava, eu inventava. Me tornei muito bom em inventar pra não desagradar as pessoas - talvez por prática.
Nos encontramos na cafeteria novamente no dia seguinte e no dia depois daquele. Da terceira vez, eu disse que queria mostrar a ela a minha casa. Dormimos juntos. O tempo inteiro, eu senti uma sensação estranha, como se já conhecesse Felícia. Acho que me apaixonei, pensei. Não sei como é a paixão, não tenho muitas lembranças dela.
Depois de algum tempo ela começou a frequentar a minha casa e eu a dela. As coisas estavam ficando mais sérias, então resolvi conta-la sobre a minha condição.
Felícia, eu tenho amnésia.
"Mentira", disse ela.
Será que ela disse isso?
Expliquei os detalhes da minha doença e pude ver seus olhos se enchendo de lágrimas. De início, achei que ela fosse terminar comigo. Afinal, quem quer viver com um cara que qualquer hora dessas pode se esquecer do próprio nome? Olhei-a bem nos olhos e pedi desculpas. Disse que entenderia caso ela fosse embora e que não ficaria com raiva caso isso acontecesse. "Eu vou ficar bem", eu disse, "não se preocupe comigo.
"Não é isso, imbecil" - nós nos chamávamos assim às vezes, mas de uma forma carinhosa. "Eu não quero que você me esqueça", balbuciou.
Olhei-a no fundo dos olhos e disse-a que jamais a esqueceria. Abracei-a, deitamos na cama e ficamos juntos até um dos dois cair no sono.
Os meses se passaram. O meu problema continuava, mas parecia cada vez menos grave. Felícia havia se acostumado a me encontrar desorientado em vários lugares, eu deixei o número dela na discagem rápida do meu celular. Ela me levava pra casa, então me acalmava e me fazia um café. Dormíamos juntos e no dia seguinte era como se nada tivesse acontecido. Felícia me amou. Se eu amei Felícia, eu não me lembro, mas espero ter amado. Ela foi o que me manteve inteiro por meses - ou anos? - da minha vida.
Mas a vida não é um conto romântico. Pra ser sincero, nem esse conto é um conto romântico, então foda-se. Conforme todo relacionamento, o meu e de Felícia foi perdendo, aos poucos, a luz. A rotina instaurou-se como um fungo e foi, aos poucos, tirando o gosto de tudo que tinha ali. Meus surtos de amnésia diminuíram, mas ela continuava na discagem rápida do meu celular. Ainda assim, toda vez que ela ia me buscar, eu sentia um olhar de cansaço familiar. Nos bons dias também não éramos diferentes. Quando nos encontrávamos, não tirávamos a roupa e íamos pro quarto como antes. Quando nos despedíamos, não era com a dor da saudade, como antes. Pra ser bem sincero, eu sentia uma sensação de alívio toda vez que me via sozinho no meu próprio espaço depois de uma "Temporada de Felícia".
Decidi que já estava na hora de terminar aquele relacionamento. Chamei-a pro café, lugar que nunca mais frequentamos desde que nos descobrimos na cama. Já havíamos ido pra outros lugares além das nossas casas, claro. Fomos pra museus. Fomos pra bares e, quando sobrava dinheiro e estávamos cansados da rotina, íamos gastar tudo em um restaurante caro qualquer. Ainda assim, achei que a cafeteria seria o melhor lugar pra terminar.
Enfim chegou o dia, nos encontramos e começamos a conversar. Eu pude sentir que ela estava inquieta, mas fez de tudo pra não demonstrar. Rimos e trocamos opiniões sobre os mais diversos assuntos, de uma forma como não fazíamos há muito tempo e eu me senti feliz de estar ali.
Fomos pra minha casa. Tiramos a roupa como fazíamos antes e transamos. Foi um bom sexo, apesar de tudo. Quando terminou, ela virou pro lado e não falou nada. Perguntei o que houve, mas ela se conteve e respondeu, em respiração ainda ofegante, um apenas "nada". Levantei da cama e caminhei na direção ao lado dela. "Precisamos conversar", eu falei.
"Eu sabia!" ela gritou, como nunca havia gritado antes.
"O que houve?"
"VOCÊ SABE O QUE HOUVE"
"Olha, Felícia, eu não sei se estamos dando certo."
"Como não está? Você não é feliz comigo?" indagou, enquanto seus olhos enchiam-se de lágrimas.
"Olha, não é isso..."
"Você só quer esquecer de mim!" disse, balbuciando.
"Felícia, eu NUNCA vou esquecer você."
Obviamente, eu estava mentindo. Já havia esquecido de outras antes dela e sabia que, longe da minha rotina, ela não duraria muito tempo. Ainda assim, não queria que ela se sentisse pior do que já estava, então continuei dizendo.
"Não tem como eu me esquecer desses teus olhos castanhos, desse seu sorriso tímido..."
"Não. Não, não, não, NÃO! Você já disse isso ANTES!"
Eu não me lembrava de ter dito nada, mas aquela definitivamente não era a hora pra ressaltar esse detalhe. "Eu estava falando a verdade!", bradei.
"Não tem jeito. Por mais que eu te ame, nós nunca daremos certo juntos."
"Felícia, nós nem temos tido bons momentos."
"PARA DE ME CHAMAR DE FELÍCIA! VOCÊ VAI TERMINAR COMIGO DE NOVO!"
"Eu não queria te ofender, amor... Como assim de novo?"
Nesse momento, ela arregalou os olhos e olhou pra mim como quem fala mais do que deve. O silêncio invadiu o quarto por alguns segundos, que pareceram minutos. Pisquei os olhos e caiu a ficha.
"Como assim de novo, Felícia?", perguntei.
Ela olhou pra baixo, envergonhada. Pude ver uma lágrima caindo no seu colo e molhando a barra do vestido amarrotado que ela usava.
"Nós namoramos antes", ela confessou. "Você terminou comigo por um motivo bobo, assim como está fazendo agora. Tem mais. Meu nome não é Felícia, mas fiquei com medo que você reconhecesse meu nome ao me encontrar na cafeteria."
Olhei-a enquanto tentava entender o que estava acontecendo. Fiquei espantado, envergonhado, puto. Me senti invadido, mas feliz - mas invadido.
"Sempre que você dizia que nunca ia me esquecer, eu tentava sorrir e fingia que era verdade. A verdade, entretanto, é que eu vou ficar devastada por cinco anos e você por cinco minutos."
Eu não sabia o que dizer. Ela estava certa. A partir do momento que ela saísse da minha casa, ela seria deixada pra trás, como todas as minhas memórias anteriores. Abracei-a bem forte, como não fazia há meses.
"Qual o seu nome real?", perguntei.
"Amanda".
"Amanda é um bom nome. Você sabia que foi o nome da minha primeira namorada?"
"Sim."
"Era você?"
"Sim.", respondeu-me, de forma irritada.
"Me desculpe por não lembrar."
"Tudo bem, eu já estou acostumada com isso...", respirou fundo. "Eu sabia que esse momento iria chegar mais cedo ou mais tarde. Não é sua culpa."
"Como foi da última vez?"
"Foi perfeito", ela falou, em voz de choro.
"Não, não isso."
"Ah, você quer dizer o término? Foi uma merda. Eu disse que não aguentava mais a forma como você me tratava, que você não gostava de verdade de mim. Não era verdade. Eu só estava insegura. Tinha medo que você me deixasse por uma mulher do seu antigo trabalho."
"Qual era o meu antigo trabalho? Perguntei."
"Você trabalhava na cafeteria."
"Isso explica como eu sempre sou tratado bem lá, o atendimento é um lixo."
"É, eu sei", disse ela, já mais calma sobre a situação.
"E o que eu fiz quando você disse aquelas coisas?"
"Você disse que eu podia ir embora. Você disse que não importava o que eu fizesse e o quanto eu reclamasse de nós dois, porque no final você me esqueceria por cinco minutos e eu levaria cinco anos."
"Quanto tempo faz isso?"
"Cinco anos."
"Ah... Aí você foi embora?"
"É."
Notei que meus olhos estavam molhados. Eu senti pena dela. Por mais que eu tentasse, eu não estava mais apaixonado. Por mais que eu visse agora quão boa ela era, eu não podia continuar existindo em uma mentira.
Enxuguei as lágrimas com as costas da mão e falei:
"Amanda, eu sinto muito estarmos terminando, eu sinto mesmo. Eu te amo."
"Você nunca me disse isso.", retrucou.
"Mas é verdade. Talvez eu não soubesse antes, mas agora eu sei."
Ela me abraçou forte e começou a chorar também.
"Ei, Amanda..."
"Diz."
"Quanto tempo levou pra que eu te esquecesse da última vez?"
"Eu não sei, acho que uns dois meses".
"Você pode me fazer um favor?" disse eu, começando a chorar ainda mais.
"Qualquer coisa, meu amor."
"Me espera por mais dois?"

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Vou parar de tragar nós dois.

Cá estou eu de novo. Ainda não terminei minhas tarefas diárias da semana passada, mas também não te superei. Estou há três dias sem chorar e quatro minutos sem sorrir. Vendo assim, até acho que estou bem. Queria tomar um banho de chuva pra lavar nós dois, mas será que preciso? O cheiro do teu perfume no meu travesseiro é confortável e reconfortante. Mas não me leve a mal, você não move a minha vida. Eu marco o tempo com paixões como você, eventualmente eu vou parar de tragar nós dois e fazer algo interessante. É cedo demais pra dizer, mas acredito que essa tenha sido a última vez pra mim. Amar é sempre formidável – apaixonar-me, por outro lado, nem tanto. Esse cigarro que eu fumo também é meu último, mas ainda haverão muitos outros últimos dele. Tenho lido aquele teu livro que nunca te devolvi e sempre coloco as tuas roupas pra lavar, por mais limpas que elas estejam. Aos poucos, eu vou desbotar nós dois na marra e não tem nada de muito especial nisso tudo. O tempo sempre passa – e passa de uma forma engraçada! No passado, você foi meu futuro. No presente, você é meu passado. O que será que resta de você pro meu futuro? Talvez alguma lembrança dessas tuas roupas manchadas, talvez nem essas. O livro?

Voz de fundo.

Lembra de quando você não era nada além de uma voz na minha cabeça? Nós passeávamos de um lado para o outro em harmonia, bebendo e, ocasionalmente, fumando mais do que deveríamos. Às vezes discordávamos, mas você sempre tinha razão. De todas as formas possíveis, você sempre foi melhor do que eu em fingir que acertou. Eu sabia que eu estava errado. Afinal de contas, eu sou você, por que eu não pensei nisso antes? Não importa, acho que eu estava entretido demais com a sua existência pra ignorar a falta dela. O que fizemos de errado, eu e você? Quando foi que você se tornou tão perversa e quando foi que eu comecei a engolir esse comportamento sem questionar? Me sinto um sócio aposentado da empresa que eu criei. De alguma forma, você conseguiu alcançar o maior de mim, os 51% para tomar o controle. De algum jeito, eu hoje sou mais você do que eu mesmo, você assumiu a direção nessa viagem. Mas tudo bem, não precisamos ser inimigos. Eu te protegi e sempre foi assim, agora você vai me proteger. "A moralidade é opinião", você disse. Eu espero que estejamos certos nisso, querida amiga, ou estaremos destruindo o pouco que resta de tudo que já foi bom no mundo.