domingo, 4 de dezembro de 2016

Felícia.

Eu sofro de amnésia. Não é como se eu esquecesse de tudo, mas também não lembro nada. Às vezes uma pessoa passa por mim na rua e me pergunta como eu estou, mas nunca sei se conheço essa pessoa. Falo despretensiosamente, mas algumas vezes a pessoa me pergunta se eu já esqueci dela.
Por conta da minha condição, eu nunca sei pra quantas pessoas eu já contei sobre esse meu problema.
Um dia desses, conheci uma mulher na cafeteria ao lado do apartamento onde eu moro. Ela me disse que o nome dela era Felícia. É um bom nome. Conversamos sobre as mais diversas coisas, sobre as nossas vidas e tudo ao redor delas. O que eu não lembrava, eu inventava. Me tornei muito bom em inventar pra não desagradar as pessoas - talvez por prática.
Nos encontramos na cafeteria novamente no dia seguinte e no dia depois daquele. Da terceira vez, eu disse que queria mostrar a ela a minha casa. Dormimos juntos. O tempo inteiro, eu senti uma sensação estranha, como se já conhecesse Felícia. Acho que me apaixonei, pensei. Não sei como é a paixão, não tenho muitas lembranças dela.
Depois de algum tempo ela começou a frequentar a minha casa e eu a dela. As coisas estavam ficando mais sérias, então resolvi conta-la sobre a minha condição.
Felícia, eu tenho amnésia.
"Mentira", disse ela.
Será que ela disse isso?
Expliquei os detalhes da minha doença e pude ver seus olhos se enchendo de lágrimas. De início, achei que ela fosse terminar comigo. Afinal, quem quer viver com um cara que qualquer hora dessas pode se esquecer do próprio nome? Olhei-a bem nos olhos e pedi desculpas. Disse que entenderia caso ela fosse embora e que não ficaria com raiva caso isso acontecesse. "Eu vou ficar bem", eu disse, "não se preocupe comigo.
"Não é isso, imbecil" - nós nos chamávamos assim às vezes, mas de uma forma carinhosa. "Eu não quero que você me esqueça", balbuciou.
Olhei-a no fundo dos olhos e disse-a que jamais a esqueceria. Abracei-a, deitamos na cama e ficamos juntos até um dos dois cair no sono.
Os meses se passaram. O meu problema continuava, mas parecia cada vez menos grave. Felícia havia se acostumado a me encontrar desorientado em vários lugares, eu deixei o número dela na discagem rápida do meu celular. Ela me levava pra casa, então me acalmava e me fazia um café. Dormíamos juntos e no dia seguinte era como se nada tivesse acontecido. Felícia me amou. Se eu amei Felícia, eu não me lembro, mas espero ter amado. Ela foi o que me manteve inteiro por meses - ou anos? - da minha vida.
Mas a vida não é um conto romântico. Pra ser sincero, nem esse conto é um conto romântico, então foda-se. Conforme todo relacionamento, o meu e de Felícia foi perdendo, aos poucos, a luz. A rotina instaurou-se como um fungo e foi, aos poucos, tirando o gosto de tudo que tinha ali. Meus surtos de amnésia diminuíram, mas ela continuava na discagem rápida do meu celular. Ainda assim, toda vez que ela ia me buscar, eu sentia um olhar de cansaço familiar. Nos bons dias também não éramos diferentes. Quando nos encontrávamos, não tirávamos a roupa e íamos pro quarto como antes. Quando nos despedíamos, não era com a dor da saudade, como antes. Pra ser bem sincero, eu sentia uma sensação de alívio toda vez que me via sozinho no meu próprio espaço depois de uma "Temporada de Felícia".
Decidi que já estava na hora de terminar aquele relacionamento. Chamei-a pro café, lugar que nunca mais frequentamos desde que nos descobrimos na cama. Já havíamos ido pra outros lugares além das nossas casas, claro. Fomos pra museus. Fomos pra bares e, quando sobrava dinheiro e estávamos cansados da rotina, íamos gastar tudo em um restaurante caro qualquer. Ainda assim, achei que a cafeteria seria o melhor lugar pra terminar.
Enfim chegou o dia, nos encontramos e começamos a conversar. Eu pude sentir que ela estava inquieta, mas fez de tudo pra não demonstrar. Rimos e trocamos opiniões sobre os mais diversos assuntos, de uma forma como não fazíamos há muito tempo e eu me senti feliz de estar ali.
Fomos pra minha casa. Tiramos a roupa como fazíamos antes e transamos. Foi um bom sexo, apesar de tudo. Quando terminou, ela virou pro lado e não falou nada. Perguntei o que houve, mas ela se conteve e respondeu, em respiração ainda ofegante, um apenas "nada". Levantei da cama e caminhei na direção ao lado dela. "Precisamos conversar", eu falei.
"Eu sabia!" ela gritou, como nunca havia gritado antes.
"O que houve?"
"VOCÊ SABE O QUE HOUVE"
"Olha, Felícia, eu não sei se estamos dando certo."
"Como não está? Você não é feliz comigo?" indagou, enquanto seus olhos enchiam-se de lágrimas.
"Olha, não é isso..."
"Você só quer esquecer de mim!" disse, balbuciando.
"Felícia, eu NUNCA vou esquecer você."
Obviamente, eu estava mentindo. Já havia esquecido de outras antes dela e sabia que, longe da minha rotina, ela não duraria muito tempo. Ainda assim, não queria que ela se sentisse pior do que já estava, então continuei dizendo.
"Não tem como eu me esquecer desses teus olhos castanhos, desse seu sorriso tímido..."
"Não. Não, não, não, NÃO! Você já disse isso ANTES!"
Eu não me lembrava de ter dito nada, mas aquela definitivamente não era a hora pra ressaltar esse detalhe. "Eu estava falando a verdade!", bradei.
"Não tem jeito. Por mais que eu te ame, nós nunca daremos certo juntos."
"Felícia, nós nem temos tido bons momentos."
"PARA DE ME CHAMAR DE FELÍCIA! VOCÊ VAI TERMINAR COMIGO DE NOVO!"
"Eu não queria te ofender, amor... Como assim de novo?"
Nesse momento, ela arregalou os olhos e olhou pra mim como quem fala mais do que deve. O silêncio invadiu o quarto por alguns segundos, que pareceram minutos. Pisquei os olhos e caiu a ficha.
"Como assim de novo, Felícia?", perguntei.
Ela olhou pra baixo, envergonhada. Pude ver uma lágrima caindo no seu colo e molhando a barra do vestido amarrotado que ela usava.
"Nós namoramos antes", ela confessou. "Você terminou comigo por um motivo bobo, assim como está fazendo agora. Tem mais. Meu nome não é Felícia, mas fiquei com medo que você reconhecesse meu nome ao me encontrar na cafeteria."
Olhei-a enquanto tentava entender o que estava acontecendo. Fiquei espantado, envergonhado, puto. Me senti invadido, mas feliz - mas invadido.
"Sempre que você dizia que nunca ia me esquecer, eu tentava sorrir e fingia que era verdade. A verdade, entretanto, é que eu vou ficar devastada por cinco anos e você por cinco minutos."
Eu não sabia o que dizer. Ela estava certa. A partir do momento que ela saísse da minha casa, ela seria deixada pra trás, como todas as minhas memórias anteriores. Abracei-a bem forte, como não fazia há meses.
"Qual o seu nome real?", perguntei.
"Amanda".
"Amanda é um bom nome. Você sabia que foi o nome da minha primeira namorada?"
"Sim."
"Era você?"
"Sim.", respondeu-me, de forma irritada.
"Me desculpe por não lembrar."
"Tudo bem, eu já estou acostumada com isso...", respirou fundo. "Eu sabia que esse momento iria chegar mais cedo ou mais tarde. Não é sua culpa."
"Como foi da última vez?"
"Foi perfeito", ela falou, em voz de choro.
"Não, não isso."
"Ah, você quer dizer o término? Foi uma merda. Eu disse que não aguentava mais a forma como você me tratava, que você não gostava de verdade de mim. Não era verdade. Eu só estava insegura. Tinha medo que você me deixasse por uma mulher do seu antigo trabalho."
"Qual era o meu antigo trabalho? Perguntei."
"Você trabalhava na cafeteria."
"Isso explica como eu sempre sou tratado bem lá, o atendimento é um lixo."
"É, eu sei", disse ela, já mais calma sobre a situação.
"E o que eu fiz quando você disse aquelas coisas?"
"Você disse que eu podia ir embora. Você disse que não importava o que eu fizesse e o quanto eu reclamasse de nós dois, porque no final você me esqueceria por cinco minutos e eu levaria cinco anos."
"Quanto tempo faz isso?"
"Cinco anos."
"Ah... Aí você foi embora?"
"É."
Notei que meus olhos estavam molhados. Eu senti pena dela. Por mais que eu tentasse, eu não estava mais apaixonado. Por mais que eu visse agora quão boa ela era, eu não podia continuar existindo em uma mentira.
Enxuguei as lágrimas com as costas da mão e falei:
"Amanda, eu sinto muito estarmos terminando, eu sinto mesmo. Eu te amo."
"Você nunca me disse isso.", retrucou.
"Mas é verdade. Talvez eu não soubesse antes, mas agora eu sei."
Ela me abraçou forte e começou a chorar também.
"Ei, Amanda..."
"Diz."
"Quanto tempo levou pra que eu te esquecesse da última vez?"
"Eu não sei, acho que uns dois meses".
"Você pode me fazer um favor?" disse eu, começando a chorar ainda mais.
"Qualquer coisa, meu amor."
"Me espera por mais dois?"

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Vou parar de tragar nós dois.

Cá estou eu de novo. Ainda não terminei minhas tarefas diárias da semana passada, mas também não te superei. Estou há três dias sem chorar e quatro minutos sem sorrir. Vendo assim, até acho que estou bem. Queria tomar um banho de chuva pra lavar nós dois, mas será que preciso? O cheiro do teu perfume no meu travesseiro é confortável e reconfortante. Mas não me leve a mal, você não move a minha vida. Eu marco o tempo com paixões como você, eventualmente eu vou parar de tragar nós dois e fazer algo interessante. É cedo demais pra dizer, mas acredito que essa tenha sido a última vez pra mim. Amar é sempre formidável – apaixonar-me, por outro lado, nem tanto. Esse cigarro que eu fumo também é meu último, mas ainda haverão muitos outros últimos dele. Tenho lido aquele teu livro que nunca te devolvi e sempre coloco as tuas roupas pra lavar, por mais limpas que elas estejam. Aos poucos, eu vou desbotar nós dois na marra e não tem nada de muito especial nisso tudo. O tempo sempre passa – e passa de uma forma engraçada! No passado, você foi meu futuro. No presente, você é meu passado. O que será que resta de você pro meu futuro? Talvez alguma lembrança dessas tuas roupas manchadas, talvez nem essas. O livro?

Voz de fundo.

Lembra de quando você não era nada além de uma voz na minha cabeça? Nós passeávamos de um lado para o outro em harmonia, bebendo e, ocasionalmente, fumando mais do que deveríamos. Às vezes discordávamos, mas você sempre tinha razão. De todas as formas possíveis, você sempre foi melhor do que eu em fingir que acertou. Eu sabia que eu estava errado. Afinal de contas, eu sou você, por que eu não pensei nisso antes? Não importa, acho que eu estava entretido demais com a sua existência pra ignorar a falta dela. O que fizemos de errado, eu e você? Quando foi que você se tornou tão perversa e quando foi que eu comecei a engolir esse comportamento sem questionar? Me sinto um sócio aposentado da empresa que eu criei. De alguma forma, você conseguiu alcançar o maior de mim, os 51% para tomar o controle. De algum jeito, eu hoje sou mais você do que eu mesmo, você assumiu a direção nessa viagem. Mas tudo bem, não precisamos ser inimigos. Eu te protegi e sempre foi assim, agora você vai me proteger. "A moralidade é opinião", você disse. Eu espero que estejamos certos nisso, querida amiga, ou estaremos destruindo o pouco que resta de tudo que já foi bom no mundo.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

vou te dizer, Poesia, o que eu tenho sonhado

Poesia, queria que
teus versos me abraçassem
e chorassem comigo pela
dor, quem dirá que é
exagero de nós dois?
palavra e poeta, sofrendo pois
de que será que sofreríamos?
certamente amor e falta
e de raiva em caixa alta
e de colo e de saudade
mas aí então, Poesia
chegaria o final do dia
e amar-te-ia entre estrofes
e ficaria ali, olhando tuas letras
e tuas vírgulas, teus pontos
tonto de ler-te cabo a rabo
de novo, de novo e de novo...

impregnados

estamos impregnados de paixão
e amargura, temos medo
morremos de medo
vivemos dele
e só pensamos em
nós mesmos, apenas
enquanto não admitimos
nossa maior capacidade:
amor. a ele se curvam
todas as outras vontades e
lógicas, planos, futuro,
ao amor nada se nega
nem nada se pede.
queria a estar recitando
esses versos entorpecidos
e aborrecidos, não quero
mais escrevê-la nem
dizer que é meu e dela
esse meu arrependimento
de faltá-la agora
ao invés de
tê-la amado antes.

sábado, 5 de novembro de 2016

Tomates.

Perguntei pra onde ela tinha ido mais cedo.
É complicado, respondeu.
Então ta.
Que foi, Roberto?
Nada, ué!
Você fez uma cara estranha.
Não fiz não. Eu não faço cara estranha, só a minha cara que é assim.
Você não quer saber onde eu tava?
Você quer dizer?
É complicado.
Então por que você ta voltando pro assunto, Marta?

Transamos. Muito bem até. Marta era nova. Não que fosse muito mais jovem do que eu, mas era nova na minha vida. Antes da Marta veio a Sofia e antes da Sofia veio a Aurora. Eu tenho essa mania de só encontrar mulher descompensada, mas a Marta era diferente. Muito insegura pra ser descompensada, mas o resto não prestava. Sofia era puta, Aurora era esnobe. Marta era só meio boba, então tava tudo bem.

 - Comprei tomates - falou.
Eu gostava do jeito como ela dizia a palavra "tomates", com um S no final. Marta tinha um sotaque do sul do país que me arrepiava e me fazia querer transar de novo até quando já tínhamos acabado de transar. Isso não acontecia com as outras.

- Marta, eu acho que to apaixonado por você.
Ela sorriu de um jeito que eu não vou descrever, mas que deu vontade de transar ainda mais.

Conforme o tempo foi passando, Marta começou a sair com outro homem. Não me importei. Uma coisa que eu não suporto é quem me faz de bobo, e ela não o fez. Me contou quando o caso começou e eu não me importei, disse que ia fazer o mesmo. Arrumei outra mulher também, a Lola, mas a Marta não ligou. Uma vez Lola veio passar o final de semana conosco e transamos os três. Lola era melhor de cama, mas Marta era mais atenciosa a mim. No domingo de noite eu terminei com Lola e disse pra Marta que eu queria ficar só com ela.
Veja bem, isso não acontecia com Sofia, que só estava comigo pelo dinheiro. Aurora não era má, mas tinha uma família esnobe, daquele tipo que dá asco, sabe? Foi mimada demais e apodreceu por dentro, acredito eu. Das outras eu não lembro muito, naquela época eu bebia demais.
O tempo foi passando e eu e Marta acabamos nos casando. Tivemos dois lindos filhos, mas um deles não era meu. Marta nunca parou de ver o outro homem e faz uma semana que ela não aparece.
Queria ter amado Lola.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Incômodos.

O gosto amargo na minha boca é o epicentro de todas as minhas crises existenciais. A metáfora em si é repleta de outros significados: a acidez do cotidiano sendo tragada, aos poucos, por uma pessoa como eu, jamais fará bem algum. Mas vai além - Eu não sinto amargor quando durmo, quando como ou quando beijo. Não o percebo quando sorrio, quando canto ou quando me apaixono, mas percebo quando escrevo. Daí vem a minha quebra: a dor que eu sinto na palavra é a espora para a continuidade da poesia e, portanto, essência da conservação do meu estado mental. Mas não gosto do amargor. Compreende-lo não me traz nenhum prazer, nem mesmo o da aceitação. Eu não aceito que a minha sanidade necessite uma âncora, não suporto que a minha compreensão de mundo precise ser tão negativa e não o deixarei ser. Mas então eu devo começar uma mudança! e na minha cabeça eu a começo: planejo todas as possíveis dificuldades e destruo de uma vez só a base lógica que forma o individualismo egoísta, egocêntrico e podre. Aplico meus conhecimentos em diversas áreas, espalho ideias pelo mundo e espero. Nada acontece. Ao refazer meus passos, descubro que minhas sementes foram cuidadosamente arrancadas por aqueles que me desprezam e que preservam o mesmo ódio que, neles, eu hoje tento destruir, mas eu não desisto. Tento de novo e falho novamente, tento "mais uma vez" durante tanto tempo que o amargor agora é permanente. Choro tudo em rum e veneno, me acalmo um pouco, encontro uma bela jovem e me apaixono. Frustro-me tentando explicar minhas ideias e perco a cabeça, saio de casa e vou dormir na sarjeta, mas ainda estou na minha cabeça, então desisto de tentar. Maquiavel uma vez disse que não há nada mais difícil ou perigoso do que tomar a frente na introdução de uma mudança. Volto ao meu cigarro, apesar de não fumar. Apego-me a velhos atos prejudiciais pra me assegurar de que a morte chegará antes da loucura, mas o amargor volta a me assombrar os dias. Apago-me no cigarro. Por que logo eu a enxergar o mundo? Com tantos outros grandes homens...

domingo, 23 de outubro de 2016

Amnésia

Não lembro de você
e se passou pela
minha vida, passou
mal percebida e mal
apresentada, não sei
o que te faz ser tão
pouco lembrada, mas
de você eu não lembro
então obriga-me, Dolores
ou Ana, ou Giulia, ou Eva
a recordar suas cores
deixando-me marcas
que a ressaca não leva:
sorri pra mim, querida
pr'eu lembrar de nós
depois da despedida e,
quando estivermos a sós,
me sussurra um segredo
e alimenta, com olhos
com boca e vontade
esse incontrolável medo
de lhe esquecer de verdade.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O louco.

Eu me condeno, de certa forma, por preservar a razão dentro de mim. Queria ser o louco nesse mundo, pois a razão gerou a guerra. A razão gerou o capitalismo, a fome, a desigualdade e todo o resto. O sentimento, por outro lado, gerou a arte e moldou a arte. Talvez a razão tenha tentado imitar, mas que pouca arte em razão demais! Mas que triste é o sóbrio, o intelectual, o crítico. Afortunados são os ignorantes da razão, que pouco sentem seu gosto amargo. Talvez melhor fosse se acreditássemos nos xamãs, nos signos e nos ciganos. Talvez houvesse então combustível pra continuar respirando o ar da natureza ao invés de trabalhar pela manutenção de uma total falta de objetivo. A razão criou o dinheiro. O sentimento também matou, mas quão poucas foram essas mortes perante a soberania de tudo que é lógico? O sentimento faz sofrer, mas o que é viver sem dor? E digo mais: o amor até dói e castiga a razão, mas a razão dói e afoga o amor. A razão sorri, mas o sentimento chora. A razão consola, mas o sentimento afaga. A razão comanda, mas o sentimento pede, chora, sofre e cala.

domingo, 25 de setembro de 2016

sobras

Encontrei mais consolo
em meus tolos acordes
que na tua voz e mais
ternura nos meus atos que
em tuas carícias.
Não digo-te isso, porém,
por virtude:
não vou magoar-te
nem tirar mais uma só
lágrima de nós dois,
mas queria poder
confessar-te minh'inocência
sem desmoralizar a tua.
Queria poder explicar-te que
a perversidade que vistes em mim
foi só reflexo do teu medo
ou do meu medo até
de perder-me em nós
 - como o fiz -
e de não mais voltar a mim
 - como tentei
ao declarar-me louco
por tanto amar o pouco
que de ti eu tive




(e só te liguei pra ver se
tinha um pouco mais, talvez
sobrando).

sábado, 24 de setembro de 2016

Pílulas.

Eu nunca sei quando vou acordar de manhã e ceder à vontade que eu tenho de cometer suicídio. Mas não, eu não estou triste. Não estou feliz também, mas acho que o problema é esse: eu não sinto nada. A raiva já não governa os meus socos contra a parede e as substâncias já não me levam para o meu País das Maravilhas. Queria voltar no tempo e pedir desculpas a todos que feri, mas não posso. Queria te dizer o que eu sinto, mas não importa. De alguma forma, eu sou capaz de depositar minhas esperanças em todas as oportunidades erradas que eu encontro, então acabo do mesmo jeito que comecei - ou pior. Às vezes nem meus textos eu consigo terminar, então quem sou eu? Já não sei mais se escrevo para eles, para mim ou para ti; queria que minha vontade tivesse a decência de voltar ao lugar onde pertence. Aí eu reclamo, logo eu!, mas ninguém entende. Talvez pensem que eu vivo harmonicamente com meu dinheiro em abundância e alguns espaços em branco nos cantos da minha mente, mas é justamente o contrário: se eu pudesse desistir de todo o dinheiro do mundo para beijar-te a boca uma última vez e tomar alguns comprimidos antes de dormir pra sempre, eu estaria realizado. Meu objetivo, seja ele qual for, já está completo. Meu coração é poesia e meu corpo é só uma casca, então que tudo se desfaça na infinitude do tempo ou na eficácia dessas pílulas.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Para os momentos de dificuldade:

Um dia, encontrarás
uma das lascas de nós dois
para então chorar
silenciosamente a dúvida.
Tuas certezas vibrarão
sob a luz da lembrança
e descobrirás que
os sorrisos que te roubei
apenas esconderam-se
no teu medo, mas
não temas, não chores mais,
não escondas-te de mim.
Não te sofro, não te espero
não te amo mais e não quero
sob hipótese alguma
que quebres nosso tão sagrado
e arquitetônico
silêncio.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

"Próximo!"

Desculpe-me pela ausência, eu não tenho dormido direito. Também não tenho comido direito, mas quem de nós o faz? Com tanta coisa que nos é empurrada, tanto que temos que engolir... É engraçado que alguns considerem a maior qualidade do Homo Sapiens aquilo que eu considero a nossa maior falha: nos adaptamos a qualquer ambiente. Se formos parar pra pensar, em termos de dominância do meio estamos indo muito bem, mas, em compensação, que espécie nós somos! Destruímos tudo e reconstruímos do nosso próprio modo independente das consequências. Pra mim, não somos mais do que um vírus multiplicando-se rapidamente em um sistema que falhou em nos extinguir enquanto havia tempo. É irônico, ainda assim, que essa mesma característica seja a nossa destruição. Ao que tudo indica, somos capazes de adaptação à perda, à miséria, à injustiça, à desigualdade. Somos capazes de adaptação à indiferença pelo mundo que nos cerca e, como uma jibóia, somos capazes de engolir problemas bem maiores do que o nosso tamanho e até crescer com eles. Mas sempre tem o outro lado: como será que o mundo à nossa volta é afetado pelas nossas atitudes? Será que tudo melhora quando engolimos aquilo que é colocado no nosso prato, por mais repugnante que seja? Ou será que a tendência de todo governante é colocar alguma substância ainda mais repugnante e apresenta-la como melhor do que a anterior, só pra ver se repetimos o processo de engoli-la? E então, mesmo sentindo toda essa impotência rasgando a nossa garganta, começamos mais uma vez a digerir essas meias-verdades cruas e vis, ignorando todos os sinais e obdecendo apenas a um instinto básico: adaptação. Mas eu não sei, talvez minha ideia de vida seja diferente disso tudo. Acho que chegamos a um ponto em que, embora protestemos com nossas curtidas, compartilhamentos e retweets pelo fim de toda covardia óbvia cometida que consigamos identificar, nada se resolverá. Essa conclusão torna-se clara quando, ao invés de desconstruir um raciocínio que formou a ideia errada, perdemo-nos em outra ideia ainda mais estapafúrdia. Apoiamos outro presidente, votamos e desfazemos amizades por partidos políticos que, ao que tudo indica, nunca tiveram nenhuma intenção de ajudar. Afinal, eles fazem como nós: adaptam-se. Adaptam-se à corrupção e à ineficiência como nossos ancestrais fizeram quando usaram peles de animais para adaptarem-se ao frio. É claro que é só uma forma de dizer, pois estas peles hoje em dia são feitas em dinheiro e sangue, mentira e sexo. Aliás, tudo eventualmente resume-se a sexo. Talvez se conseguíssemos parar de procriar, resolveríamos o problema, como uma nova ideia que surgiria no horizonte: "Passou nossa época de prosperar, irmãos! Para que a natureza sobreviva, a humanidade deve perecer!". E assim, num único ato que ligaria toda a humanidade para todo o sempre, cada ser humano do planeta meteria uma bala na própria cabeça, dando oportunidade para que a próxima espécie fizesse melhor.

sábado, 3 de setembro de 2016

Eu e minhas vontades sujas.

Se tem uma coisa que eu não suporto é barata. Entre as espécies mais conhecidas estão a Periplaneta americana, que mede cerca de 30 milímetros de comprimento, a Blattella germanica, com cerca de 15 milímetros de comprimento, a Blattella asahinai ou barata-asiática, também com cerca de 15 milímetros de comprimento, e a barata-oriental, com cerca de 25 milímetros. As baratas tropicais são muitas vezes muito maiores e é essas que a gente vê por aí. Seus ancestrais são as 'roachoids', como o Archimylacris Carbonífero e o Permiano Apthoroblattina que não eram tão grandes como as maiores espécies modernas. Mas isso não importa muito.
Eu nem sempre odiei baratas. Acho que eu tinha uns cinco anos quando estava fazendo minhas experiências secretas no banheiro e uma barata caiu ali, bem no meio dos meus tubos de ensaio. Eu chamei meus pais para mata-la, mas não pude deixar de imaginar, depois, quantas baratas poderiam ter andado ali junto aos meus materiais, na minha ausência... Comecei a pensar na minha escova de dentes, no vaso em que eu sentava pra cagar e no box que eu usava para tomar banho. Foi o fim pra mim. Desde então, eu não suporto baratas. A reles existência delas em um ambiente próximo a mim me inquieta.
Já trabalhei em restaurantes também e, claro, sempre aparecia uma barata por lá. Não importava se era restaurante de rico ou podrão, a quantidade de baratas não corresponde a qualidade da comida. Em alguns momentos da minha vida, eu achei que baratas me perseguiam por sentirem o medo que eu tinha delas.
Mas isso mudou.
Foi no meu terceiro emprego de garçom que eu tive que enfrentar meu pior medo. Foi um dia de muita chuva, daqueles em que as pessoas precisam sair das calçadas e procurar algo mais alto pra não molharem os pés. Pra piorar, era sábado. O restaurante rico estava cheio de dondocas gastando mais do que meu salário com as amigas, empresários em jantar romântico com algumas putas que valiam, por hora, mais do que eu valho por ano e, pra completar, eu: semi-empregado, ex-viciado em codeína, ketamina e (ainda me livrando de) nicotina. Velho, feio, defeituoso e sem valor aos 24 anos de idade. Meu chefe era um magnata que conseguia ver minhas dores e angústias como um cachorro vê um arco-íris. Pra ele, tudo sempre estava bem. Pra mulher dele, pro cachorro dele, pra qualquer filho hipotético e pros clientes dele, tudo estava sempre bom pra caralho.
Então foi nessa fatídica noite que eu - velho por dentro, feio, etc. - enfrentei um dos mais reveladores momentos da minha vida. Lá estava eu, anotando os pedidos e olhando pros clientes, quando de repente surge uma figura turva no canto do meu olho. Talvez se minha fobia não estivesse em um estado tão avançado, eu não a teria notado de primeira ou não saberia o que era, mas àquela altura a adrenalina já havia se ativado e meu cérebro já pensava em mil maneiras de sair daquele lugar. Mas aí eu olhei pro lado e vi outra... Sim, outra! Veja bem, assim como as dondocas, as baratas também estavam procurando abrigo da chuva - não é a primeira vez que dondocas e baratas apresentam comportamentos semelhantes, mas eu chegarei lá - e haviam encontrado um lugar perfeito ali, no Grand Restaurante de Baratopéia. Meu cérebro congelou. Olhei rapidamente para o gerente, que tentava fazer, a mim e aos outros garçons, simples e discretos sinais de que deveríamos pisar nas baratas antes que os clientes pudessem perceber qualquer coisa.
Em qualquer outra situação, eu teria fugido e perdido meu emprego. Em qualquer outro dia, em qualquer outro restaurante, mas não esse. Meu chefe havia acabado de me dar uma advertência, pois já tinha aberto uma exceção ao me contratar. Ele sabia que eu fumava, mas não tolerava que os garçons viessem com cheiro de cigarro. Eu falei que eu estava parando de fumar? Pois bem, nesse dia eu tive uma recaída e cheguei lá fedendo a câncer e desistência. Eu sabia que, caso meu comportamento essa noite fosse menos do que exemplar, eu seria demitido. Não havia decisão a ser tomada. Não existia pensar, não existia medo. Eu teria que enfrentar isso de uma hora ou outra, então foi o que eu fiz. Rapidamente - talvez rapidamente demais, pois o cliente não havia terminado de falar - eu andei até a outra mesa para atender uma senhora com um guardanapo sujo na mão há mais de 10 segundos e creck. Foi-se uma. Atendi a senhora, que havia esperado exatos 19 segundos para ser atendida. Dondocas não gostam de esperar. Elas também não gostam muito da comida dita como "prato mais bem temperado da cidade inteira", então eu suponho que elas não gostem de nada. Joguei o cadáver da barata pro canto com o pé e fui atender a outra barata. Essa estava encostada na parede, bem perto a uma puta de luxo com um decote na bunda. Essas putas de luxo adoram decotes. Eu gosto também, não ligo se é vulgar. Se aparece pra mim uma mulher com decote e uma sem, eu como as duas. O problema é que não aparece, aí eu passo a não gostar. Talvez seja por isso que eu pensei duas vezes antes de matar o inseto. Talvez a sensação de prazer causada pelo desgosto da puta fosse maior do que a sensação de desprazer de ser demitido, mas eu não podia arriscar. Além do mais, já estava com adrenalina escorrendo pelos poros da minha testa quando finalmente acometi o outro creck, finalizando a minha jogada com o pé esquerdo apoiado sobre a parede, como se nada estivesse acontecendo.
Talvez tenha sido pelo barulho, ou pela posição em que eu me encontrava - erguido, ombros pra trás, confiante - mas a puta olhou pra mim e sorriu. Não me pergunte o que aconteceu, eu não entendo até hoje, mas foi aí que o meu medo passou, e foi aí que as baratas começaram a ter medo de mim. Algo dentro de mim despertara naquele momento, como um poder secreto. Eu desfrutei a morte daquele inseto imundo, ainda sentindo-o sob o meu pé. Olhei para o meu chefe e ele estava sorrindo. Eu estava sorrindo, o mundo mudou.
A partir daí, nenhuma barata queria vir a meu encontro. De vez em quando, eu dava a sorte de encontrar algumas saindo de um boeiro quando eu saía do trabalho, e aí era só CREC, CREC, CREC. Às vezes eu encontrava algum rato também, mas não gostava de matar ratos. Além do mais, eles não fazem um barulho tão divertido quando morrem, são mamíferos. Matar barata pode, matar bichinho não.
Mas aí aconteceu uma coisa engraçada: eu comecei a sentir vontade de matar baratas. Não importava se eu estava no emprego ou com alguma mulher, estava sempre procurando por alguma barata pra matar. Uma vez uma namorada me perguntou a respeito disso, ela disse "Por que você sempre anda olhando pro chão? Parece que perdeu alguma coisa." Mas eu não perdi nada. Pra falar a verdade, eu ganhei. Foi assim que eu comecei a sair com mulheres, pra falar a verdade. Ali naquele restaurante, eu recuperei minha auto-confiança, o que começou com aquela puta do decote na bunda. Assim que o jantar deles havia terminado, eu puxei ela pra um canto e a chamei para sair. "Eu sou puta", ela disse. Eu falei "não tem problema, eu só quero te conhecer mais." e assim foi. Não transamos na primeira noite. Muita gente acha que, por ser puta, a mulher vai dar na primeira noite, mas isso só acontece quando ela ta sendo paga. Eu não queria pagar para transar com Eunice, eu gostava dela. Na segunda vez, por outro lado, não fizemos outra coisa senão transar. "Meu Deus, você não para nunca!" ela disse. Fazia muito tempo que eu não transava, então eu queria transar o tempo todo mesmo. Talvez ela não tenha dito isso. Eu invento muitas coisas e passo a acreditar que elas são verdade.
De qualquer modo, minha busca pelas baratas começou a piorar. Às vezes eu saía de madrugada do trabalho e passava mais uns quarenta minutos andando pela rua com a esperança de encontrar alguma. Se eu fosse um desses malucos com teorias de conspiração, eu diria que as baratas já sabiam quem eu era, mas eu não sou maluco. De uma forma ou de outra, as baratas não chegavam nem perto de mim. Cheguei a comentar isso numa cafeteria uma vez, dizendo que eu achava que o número de baratas na cidade havia diminuído, e o caixa me respondeu que a ele o número só parecia crescer cada vez mais. "Não é possível", indaguei. Naquela noite, saí do trabalho e fui direto pra cafeteria. Dei sorte: matei mais três baratas. em duas horas de procura. "Talvez elas só tenham encontrado lugares melhores pra ficar no final das contas", pensei, e mal vi dois homens mal encarados vindo na minha direção. Eu não pude dizer muita coisa, um deles me deu um soco na cara e o outro puxou minha carteira do bolso. Eu tinha 150 reais nela, mas não liguei muito. O que doeu mais foi o soco, que ficou latejando por mais uns 20 minutos. Cheguei em casa, coloquei gelo e fiquei pensando. Não quis ligar a TV e não quis ler o jornal do dia anterior. Só acendi um cigarro e fiquei lá, imóvel, até que algo no chão da minha cozinha me chamou atenção. Era uma barata. De início eu não reconheci o que era, pois há muito tempo que uma barata não entrava na minha fortaleza. Eu olhei pra ela e ela olhou pra mim. Dia estranho para uma barata entrar na minha cozinha, seria um sinal?
De repente, uma ideia me atingiu. Os dois homens que me assaltaram, no escuro e desprevenido, não eram tão diferentes assim de baratas. Saíam de seus esgotos para alimentarem-se do resto de outros no calar da noite e, naquele momento, eu era o resto dos outros. Talvez tenha sido por isso que eu me senti tão diminuído: eu desci de carrasco para resto de comida. Mas as coisas não poderiam ficar assim. Nesse momento, a barata saiu voando pela janela. Eu já havia superado minha insegurança e, com a ajuda da minha recém auto-confiança adquirida, eu resolveria esse problema.
Passei duas noites recolhendo baratas. Capturar baratas não é uma tarefa difícil: você esvazia uma garrafa de vinho, coloca alguma coisa doce ali dentro e deixa na rua de madrugada. Ao final do meu par de dias, eu já havia capturado sete. Era o que eu precisava. Na noite seguinte, abri a gaveta de ferramentas e escolhi minha arma: um martelo. Havia algumas outras ferramentas ali - como uma furadeira elétrica, por exemplo - mas o martelo me pareceu o mais adequado. Nenhum outro instrumento nesta gaveta, pensei, fará um creck tão sonoro ao afunda-lo nas cabeças dos homens-barata quanto o martelo.
Não havia mais dúvida. Primeiro, eu comecei a treinar com as baratas. Martelar uma barata não é tão difícil quanto parece, mas danifica o chão. Eu moro num apartamento, então avisei pro vizinho de baixo que faria um pouco de barulho das 21 às 22:30, ele ficou tranquilo em relação a isso. Eu sou um ótimo vizinho, não tem nenhum motivo pra ninguém reclamar de mim. Além do mais - e isso poucos sabiam -, era eu quem mantinha as baratas afastadas daquele humilde edifício.
Pois bem, acabei terminando de praticar mais cedo do que havia pensado. Uma das baratas tentou escapar para debaixo do meu móvel, mas consegui alcança-la com a mão. Ah, minha doce rival! Quereria eu deixar-te ir se não fosses tão repugnante e minúscula diante da minha superioridade? Talvez não. Foda-se.
Saí de casa. O martelo, agora sujo com o sangue de meus inimigos, encontrava-se entre meu braço direito e minhas costelas. Invisível, mas letal. Aproximei-me da lanchonete em que os homens me abordaram, agora fortalecido pelo meu recente massacre. Meu rosto ainda doía, mas eu não ligava pra dor. Lá estavam eles. Eram eles? Segurei meu martelo com força, mas meu casaco não deixou transparecer minhas intenções. Sorte a minha, aliás, pois nesse ponto eu já podia perceber que era apenas um casal voltando de algum restaurante. Sorri de bobo, mas parei subitamente. Do outro lado da rua, encontravam-se os dois homens que me assaltaram com mais um. Esperei o terceiro ir embora. Por sorte, ele foi mais cedo do que os outros, ou eu teria que voltar outro dia. Eles começaram a caminhar. Meu Deus, por quanto tempo estou parado aqui? Acho que eles me perceberam. Tentei virar de costas, mas, nesse instante, um deles colocou a mão no meu ombro. Segurei novamente o martelo com força e virei rápido o suficiente para quase errar a cabeça do primeiro.
TUF
Olhei para o martelo enquanto o primeiro homem-barata caía, derrotado. Olhei para o lado e senti uma dor imensa no meu maxilar. Era o punho do segundo homem barata. Ele deveria estar usando um soco inglês, pois eu senti que parte da minha cara afundou mais do que deveria. caí no chão. O segundo homem então montou em cima de mim, pronto para me desferir mais socos. Eu não conseguia abrir os olhos. Com uma demasiada dificuldade, procurei o martelo com o tato. Outro soco no nariz e quem fez creck fui eu. Encontrei o martelo. Outro soco no maxilar. respirei fundo e juntei minhas forças. PAFF. Som oco e úmido. Silêncio e gotas salgadas pingando na minha boca e ao redor. Súbito peso sobre o meu corpo, agora não mais proposital: gravidade. Empurrei o homem-barata e seu exoesqueleto pro lado, levantei e tudo girava. Limpei minhas impressões digitais do martelo e vasculhei os bolsos repugnantes dos vermes inúteis. Encontrei minha carteira com 400 reais. Peguei 150 e deixei o resto ali. Não sou ladrão. Não preciso desse dinheiro. Saí andando e deixei os corpos ali para a polícia achar.
Cheguei em casa e tomei rivotril. Não sou a favor de medicamentos para dormir, mas não queria ir para o hospital agora. Meu maxilar estava deslocado e eu não conseguia pensar em nada. Sonhei que os encontrava de novo e os matava. Foi um bom sonho.
Fiquei uma semana sem ir ao trabalho para cuidar dos ferimentos, mas já voltei e hoje em dia está tudo normal. Você deve estar pensando que eu matei de novo, que eu não pararia por aí, mas eu não sou um justiceiro: justiceiros são loucos com uma causa perdida, eu só mato baratas. Quanto aos corpos, não tive mais notícia deles e decidi, por razões bem óbvias, não voltar àquela parte da cidade. Além do mais, me deram a dica de um lugar novo lá no centro, num prédio abandonado, onde as baratas andam e se proliferam por todos os cantos. Eu vou lá essa noite, mas não estou esperando muito. Qualquer barata, hoje em dia, já se esconde ao me ver passar.

sábado, 27 de agosto de 2016

Nós dois e nossos espinhos.

Se talvez meus pensamentos soltos
não me lembrassem nossa ineficácia,
minha existência seria mais plausível.
Desperto-me verme, desprezível, cria
e ainda assim acordo, dia após dia - dois
- pra descobrir-me perdido em nós - três:
    nós dois e nossos espinhos
- às vésperas do meu novo ano, queria eu
ao menos ter-te amado até o fim do dia
em nossos gozos mundanos, na sinestesia
de pintar sorrisos tolos ao longo dos anos
por essa cidade cinza, fria e sem gosto.
Não quero aguentar
esse final de agosto
no desgosto
do sentir.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Chega.

Francamente, não quero mais escrever sobre amor. Eu cansei dele. Cansei de passar noites em claro vendo filmes e fazendo sexo, cansei de brigas insignificantes por motivos que não existem. Cansei de ter que decidir entre duas ou mais mulheres que vivem sempre no meu pé, querendo que eu seja eu mesmo de um jeito que, honestamente, não corresponde à minha real natureza. Eu quero que tudo se foda. Eu quero que se foda o seu namorado corno, a sua mãe neurótica e doente. Quero que se foda o seu pai gordo desequilibrado, que tenta controlar seus relacionamentos por questões sexuais mal resolvidas espelhadas em você. Quero ver a merda do meu filme sem ser interrompido por alguém chupando meu pau, quero fazer comida sem transar na cozinha, quero fumar meu cigarro sem me sentir culpado porque vou morrer mais cedo e deixar você sozinha cuidando dos nossos futuros e imaginários filhos. Quero pagar as minhas próprias contas, abastecer a minha geladeira e quero não precisar te dedar como se eu devesse alguma coisa pra alguém. Eu to pouco me fodendo pra sua satisfação pessoal, eu to pouco me fodendo pro seu presente de dia dos namorados, eu to pouco me fodendo pro seu perfume novo ou pro brinco que você quer. Foda-se. O que é estar feliz pra você? Viver tendo que medir cada palavra pra que a ideia que eu tenho da sua perfeição não se desfaça pelo reles vislumbre de uma realidade chula? Ou apenas esperar que eu faça o mesmo? Foda-se, eu repito. Fodam-se seus conceitos de amor e plenitude, fodam-se seus poemas mal escritos e seu sorriso vago. Fodam-se as suas lágrimas, que se não forem pra aumentar minha vontade de socar sua cara, eu não sei pra que servem.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Não muita coisa.

Eu escrevo de volta?
Não muita coisa
pra não parecer
meloso
nem simples demais
pra não parecer comum.
Eu choro, mas digo?
Ignoro suas ligações
pra parecer
despretensioso
mas ligo de volta
sem respirar pesado
pra esconder o
desespero.
O que é isso?
Desinteresse.
Mas logo agora
que eu perdi o
desinteresse?
Perdi o jogo e a moça.
Pra onde ela foi?
Está com outro, mas
não estão se beijando,
apenas conversando.
Ela olha pra mim e sorri.
Ela me ama, mas não
me quer agora.
Ela me quer, mas
só se eu não disser
que a desejo de volta.
Quando foi, amor,
que ficamos tão
complicados?

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

panne d'inspiration

minha palavra não vem
se não for tua,
mas quero-te nua
como quero-te bem

então desarma
meus poemas, Dor
e desata os nós
do meu a pe ti te

traz-me limite.
traz-me fraqueza,
fadiga, remorso, torpor
mas não amor, ma petit...

tudo menos amor.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Se eu fizer mais algum texto sobre cigarros, eu paro.

Se alguém me perguntasse, eu diria que o fumo não me preocupa. Todas as quatro mil e setecentas substâncias tóxicas matam do mesmo jeito que outras dez milhões o fazem, não há novidade nenhuma nisso. O problema não é a morte. Não é e nunca foi, pra falar a verdade. Não existem anúncios do tipo "pare de morrer" porque não é algo que possamos impedir ou dialogar a respeito com um conhecimento que vá além do básico: morremos. O objetivo por trás da morte tanto quanto o porquê de morrermos permanecem desconhecidos na maior parte dos casos, muito provavelmente porque não é do nosso interesse ou não está ao nosso alcance saber. O grande problema aí é querer morrer. O cigarro (assim como meus colegas desarmamentistas diriam) não sai por aí cometendo latrocínios. As pessoas escolhem morrer. E talvez pareça um fenômeno muito peculiar quando paramos pra pensar no que essa vontade representa, mas a mim é uma consequência perfeitamente natural ao modo de vida que temos adotado. Veja bem, o problema não é o cigarro. O problema também não são os fumantes, que nasceram tendenciosos ao suicídio. O que eu vejo aqui é apenas mais um grito de socorro. O que eu vejo aqui é dor, sofrimento, agonia, ignorância... Eu vejo uma sociedade há muito perdida nos seus objetivos, e não é pra menos! Afinal de contas, aprendemos, durante toda a vida, que determinadas regras deveriam ser seguidas, sem antes perguntarem-se se estamos de acordo com essas mesmas regras. Agimos da forma que alguém disse que devemos agir e vestimos o que alguém disse que devemos vestir. Nos apegamos ao fútil, e a tudo que é agradável à vista, mesmo que não sirva pra nada de primeira ou segunda instância. Somos bombardeados dia após dia com a ideia de que comprar é viver e viver é comprar, mas sabemos, no fundo, que algo está errado. Sabemos que, não importa o quanto a gente compre, o vazio existencial não some. Somos guiados à nossa própria insignificância e somos ensinados a guiar os próximos que virão. Não nos importamos com a nossa própria morte porque a morte em si já não dói mais do que ser massacrado diariamente pela constatação cada vez mais óbvia de que isso não é vida. [...]

terça-feira, 12 de julho de 2016

o mundo passa

o mundo passa e eu aqui
no café e na escrita
tomando um trago de cada letra
exalando a expressão linguística
pelos poros da introdução
ao interior autobiográfico de mim
e enquanto a agulha literária penetra
na raiz dos meus medos e angústias,
toda exclamação impera
e os segredos vazam pela superfície
e as verdades se escondem em vírgulas
por medo do que está por vir.
– o amor faz, aos corações partidos
o que cupins fazem a uma casa velha –
e então, sem mais nem pouco
os teus cupins me deixam oco

aqui



                                aqui




        e aqui



e não me sobra nada a dizer senão o óbvio:
estes meus cacos não aguentam mais chorar
por terem tido vontade de cair de amores
em quedas maiores do que o corpo aguenta.
a verdade é que, de meu essencial poema
destruíram-se as estrofes e as rimas
e nada mais de mim sobrou senão
os espaços deixados por nós
nesse começo de parágrafo.

domingo, 10 de julho de 2016

O Humano e o Monstro.

Às vezes me vejo como um menino bobo que projeta seus medos em realidade, pulando pra voltar pra cama de noite e cobrindo-se com medo de monstros fictícios. Como se a possibilidade de algum ser sobrenatural habitar meu quarto fosse menos complicada de encarar do que a aceitação dos meus lapsos de raciocínio presentes no calar da noite. Em suma, minha mente prefere projetar pra fora de mim a inconsistência de certezas que reside na minha atualidade, gerando a ilusão de que o único problema é a possível existência do monstro. Mas não para aí. E se eu decidir projetar meus medos em uma pessoa? Obviamente, essa pessoa mostraria traços de individualidade que, seguindo meu impulso natural de redirecionamento daquilo que me envenena, eu abominaria e tentaria, de todas as formas, criar-me em um ideal diametralmente oposto, como se, no monstro, eu encontrasse a grandiosidade de valores - tanto bons quanto maus - e quisesse duplica-la da minha própria forma, pra contra-atacar a aberração que eu mesmo inconscientemente criei, para então eu poder superar o problema. Seguindo essa linha de raciocínio, percebe-se que, ao passar o medo inicial do monstro, há para ser compreendida uma imensa vontade de se tornar grande como ele - caso, é claro, que o indivíduo possua esperança de vence-lo. Na questão da cama seria mostrar-se maduro e fingir que tem certeza de que o monstro não existe (mesmo diante da ausência de plateia, a consciência já possui um orgulho previamente desenvolvido, suficiente para faze-la manter-se como audiência para a sua própria atuação). No auto-crítico, por outro lado, o processo vem auxiliado de um ódio pelo objeto - ou pessoa - no que - ou em quem - o monstro é projetado. Nesses casos, como nos outros, acaba por haver um desvio de foco tão grande do problema original que a finalidade do monstro se perde, dando forma a um novo inimigo: um obstáculo, uma antipatia ou uma vontade secreta consomem o receptáculo em fúria, desconfigurando o objeto que, outrora neutro, passa a exibir um aspecto asqueroso e repulsivo para o dono da projeção.

A todo e qualquer propósito.

Se pararmos pra pensar, tudo em volta de nós está caindo aos pedaços. Não sei quantos de nós pensaram isso e foram apagados pela constante onda de presente, não importa o quão fútil e desnecessário a ideia atual realmente é - pois é tudo uma questão de aparências. Se não atrai, não vende. Por isso novos pensamentos morrem, não possuindo apoio financeiro ou social de primeira instância. No panorama político, por exemplo, o governo apresenta-se pouco produtivo na qualidade de ideias, com prioridade na manutenção do velho e constante retardo na implantação do novo, mas não vejo que isso acontece de forma proposital. Talvez essa improdutividade seja somente uma manifestação do óbvio: aquilo que um ser humano possui não pode ser critério de importância dada a ele diante de uma escala social. Afinal, a vida de um homem não pode depender da liberdade desse homem de se expressar diante de um contexto onde a liberdade de expressão é comprada. Fazem-se ouvidos aqueles que tem meios de faze-lo, extinguindo a verdadeira sabedoria como bem comum. A mentira é propagada em tons de verdade e a relatividade é resumida a um conjunto de instruções. Existir então significa tomar um de dois rumos: seguir como verdade aquilo que é apresentado ou optar por montar-se e desmontar-se de diferentes formas sem o manual de instruções. Mas o problema não acaba aí. Vamos supor então que eu escolha não me adequar. Ainda assim, na complexidade de qualquer ato, encontro razões para duvidar de mim. Afinal, se a liberdade humana não existe de verdade, quem sou eu para tomar escolhas que me farão progredir? Socialmente, eu sou apenas uma pequena engrenagem na evolução humana, provavelmente insignificante ou "inabsorvível" por essa enorme onda de pensamentos que me camuflará de um modo geral  a internet. Filosoficamente, minha existência não faz o menor sentido. Ao contrário do que diria Sócrates em "Penso, logo existo", que, erroneamente, justificou a existência com o pensar sem justificar o pensar com outra coisa que não a própria ação, eu não acredito na lógica da minha existência. Se estou aqui pelo fato de estar, então não estou por motivo algum. Se existe algum propósito, mas ainda não me foi revelado, qualquer tentativa de alcança-lo será um tiro no escuro. A sociedade gosta de pensar que existe algum tipo de "força" guiando-a pelos caminhos certos, mas isso é um tanto improvável, visto que a evolução nas últimas décadas levou à destruição de boa parte da Natureza que nos cerca, à intolerância religiosa e, eventualmente, guerras abastecidas por ganância e vingança. Talvez essa "força" não seja tão correta do nosso próprio ponto de vista como sociedade, talvez não exista força alguma. Mas aí volta a questão do propósito. Se posso ser qualquer coisa, por que eu me encaixaria em um padrão e, mais do que isso, por que eu quereria faze-lo, se tal padrão foi aleatoriamente criado por um conjunto de processos destrutivos e prejudiciais à própria raça humana? Daí então, como se só essa auto-enganação não se estendesse o suficiente com o constante estreitamento da liberdade de expressão humana, exige-se que, socialmente, haja um conjunto de comportamentos aceitáveis e idolatráveis para a sociedade que é, hoje, a do consumismo. A individualidade não somente morre no caminho a ser seguido, como também no modo com que o caminho previamente definido é trilhado. O sistema humano é tão controlador que não deixa espaço para o livre pensamento, mantendo quaisquer medidas de educação sob controle para que não excedam sua esfera de conhecimento. Basicamente, tudo que defendemos é ou tem grande possibilidade de ser hipócrita, toda escolha é uma prisão dentro de outra prisão e a evolução é monitorada. Alguém move-se dois passos pro lado considerado errado e uma gama social pára de ver esse alguém como ser humano. Em outros casos, caso a ideia se sustente socialmente, outro grupo passa a defende-la, o que gera uma polarização de uma certa filosofia primitiva, com conflitos fomentados pela prepotência de cada grupo ao afirmar possuir uma verdade absoluta. Então o que fazer da minha vida? Ignorar a única questão que me dá qualquer pista do meu propósito no mundo  ou da falta dele  e engolir tranquilamente tudo de podre que o futuro me reserva? Se a vida me dá limões, eu posso fazer uma limonada, mas o que eu faço quando o mundo me mostra a fome, a angústia, a miséria, a destruição e a ganância tomando conta de tudo que me cerca? Interiormente, queremos acreditar que existe sempre uma solução fácil para todos os problemas que possamos enfrentar  e isso se reflete no cinema Hollywoodiano: invasões alienígenas, asteróides, deuses e outras forças sobrenaturais, mas será que o mundo é assim? Se não lidamos com as questões mais básicas de convívio (como tolerância, reciprocidade, coletividade) quem nós somos perante os problemas que existem fora dele? Mas isso nem deve ser levado em conta quando percebe-se que a probabilidade é de falharmos como sociedade antes que qualquer outro desastre possa acontecer. Destinados ao fracasso por nem sequer termos pensado em tentar, tirando o resto de liberdade de nós mesmos ao permitir que o controle total da individualidade seja dado a governantes com seus próprios interesses mesquinhos. Eu não me permitirei. Estou cansado dessa falta de essência no cotidiano e gritarei silenciosamente minha revolta para com o indiferente. Discreta, mas irredutível, deixo que minha insignificância seja notada.

sábado, 9 de julho de 2016

Eco cotidiano

Sinto que tem algo errado. Acordei hoje sóbrio, sem dor de cabeça, sem dores randômicas nas juntas ou em qualquer outra parte do corpo. Ando até a cozinha e preparo uma caipirinha.
Caipirinha é um drink típico do Brasil. Não sei exatamente por que diabos misturar limão, cachaça e açúcar deva ser motivo para qualquer orgulho patriótico desnecessário, mas sigo sorrindo se algum gringo me pergunta se eu sei fazer caipirinha. Sei que gringos não são burros, sei que as escolas em países mais desenvolvidos são melhores do que as nossas, mas devo dizer: alguns deles se esforçam.
Terminei minha caipirinha e fui pra piscina. Nada pra fazer no sábado. Nada pra fazer no domingo, na segunda e et cetera, mas eu gosto de viver um dia de cada vez. Ainda na piscina, sinto que algo falta em mim. Alguma coisa foge do cotidiano não-normativo que eu gosto de manter com o meu corpo.
Acendo um cigarro.
Pronto, agora tudo está bem. Acredito que aquela sensação de antes era só a falta que a nicotina faz nos meus alvéolos. A falta da falta de ar que me causa é, devo dizer, desesperadora. Estou um pouco embriagado agora. Dou outro trago no cigarro. Matar-se não é nada mais, nada menos que viver. A música que os pássaros fazem no meu ouvido não é mais preciosa do que o estalo que o tabaco faz ao carburar na minha boca, que as trepidações do gelo fazem no meu copo.

sábado, 18 de junho de 2016

Irresolução

Que a interrogativa não governe meu peito,
latejante pela aflição da desconfiança.
Que meu fascínio não me esgote o viço
que se consome a cada fissura aberta
nas lacunas do meu âmago,
nos hiatos da minha mente.
Serei eu meu individual sicário
isolando-me da multidão? serei eu
a parcela vil da escória que abomino?
Será o mundo subserviente às minhas intenções
que frustram ostensivamente meus rascunhos?

segunda-feira, 13 de junho de 2016

favor ignorar

repulsa pelo social
recobrada da empatia perdida em meados de uma vida há muito esquecida
súbito interesse pelo paranormal ou esquisito
visão realista de mundo
aceitação do caos
enjoo matinal
enjoo noturno
impulso pelo entorpecimento a qualquer hora do dia
sensação de vazio existencial (tomar tylenol)
pensamentos suicidas
cansaço físico e mental
pensamentos homicidas
ausência de fome
ausência de sono
fortes emoções por desconhecidos na rua
amargura
nostalgia

e assim caminha a vida,  nada importa e eu vou lá. nem feliz, nem triste: desgosto. tudo se resume a violência, discriminação e futilidade. tudo em dia é descartável e a moral não tem valor. almas são vendidas por muito pouco e a ordem não existe. se fosse pra escrever algo sério, eu escreveria, mas isso é tudo que eu consigo lhes dizer. eu sinto náusea. eu sinto dor. minha casa está tão destruída que eu não sei por onde começar a arrumar.

existencialismo antissocial

Pergunto-me se minha aflição é justificável, mas não consigo compreender todas as respostas que se apresentam. Tudo na minha cabeça é, de certa forma, confuso. Passo a maior parte do tempo sedado em frente a telas brilhantes com entretenimentos infinitos e ofertas imperdíveis. Cada passo é dado automaticamente e, de um dia pro outro, passam-se meses ou anos. Preciso que alguém me acorde desse vazio que se tornou o mundo, mas, ao mesmo tempo, não quero acordar. Não quero ser o único ciente do entorpecimento coletivo que afunda cada vez mais a nossa empatia. O sofrimento alheio não nos causa dor, a injustiça não pesa, o que nos tornamos? O que eu me tornei ao deixar acontecer? Será que quero descobrir?

segunda-feira, 6 de junho de 2016

O que as paredes não dizem

Hospitais públicos são, em sua grande maioria, lugares onde pessoas feias e doentes encaram outras pessoas feias e doentes enquanto esperam ser atendidas por alguém que quase nunca as compreende totalmente. Nesse aspecto, pode-se dizer que estou no lugar certo. Eu estou doente. Sou doente, talvez, mas não posso dizer com absoluta certeza e, pra completar, não sou bonito. Não tenho a vida perfeita e nem chego perto disso. Dizem que os riscos de infecção em hospitais públicos são bem altos se comparados a outros ambientes públicos (como ônibus, escolas, etc.), mas eu não ligo pra nenhuma dessas coisas: eu gosto desse lugar. Gosto de ser observado por essas pobres almas e gosto que tentem adivinhar o meu problema, como faço com eles. Gosto da emergência sempre lotada, isso me dá tempo pra escrever. Gosto do barulho de tosses pesadas e de imaginar o muco catarral se apossando aos poucos dos pulmões enfermos, das lágrimas de preocupação derramadas por parentes e amigos enquanto as horas passam sem notícia do possível falecido. Tudo é um pouco mais sincero aqui — desde as máscaras de riqueza criadas por peruas fúteis às de indiferença criadas pelos mais reclusos — nenhum desses disfarces sociais funciona como deveria. O meu, por outro lado, se encaixa muito bem. Eu não sou a vítima do tiroteio. Eu não sou o cidadão ferido por faca em um assalto, não sou a senhora doente de tanto fumar e não sou o viciado em drogas. Eu sou, no entanto, todos eles, enquanto os observo. Sou o humilde trabalhador com doença de pele, sou o recém nascido, sou o filho do pedreiro. Penso, inclusive, se toda a minha trajetória teve algum motivo só por ela ter me levado até esse ponto da história: não um clímax, mas uma calmaria. Como uma ressaca de vida que agora pesa o corpo e as mãos — principalmente estas, que misturam-se em alívio e culpa por encontrarem-se em um lugar que, bem ou mal, já derramou mais sangue do que meus olhos já presenciaram e meus dedos já sentiram. Por todas as paredes que já soquei, essa é a minha sentença: porque essas paredes choram em silêncio e oram pela crença de que a justiça será feita aos pecadores.
A essas quatro paredes pertenço;
Eu e todas minhas dores.

sábado, 28 de maio de 2016

eu e Maria

Estou mancando.
Naqueles dias era tudo diferente, ainda dançávamos ao som da jukebox. Maria ainda era viva e todos se reuniam nos bares da praça pra viver e sorrir, sorrir, amar e beber.
Hoje é tudo sobre mim.
Um dia, meio cansada daquelas mesmas músicas talvez, uma moça colocou uma valsa pra tocar. Meio lenta, meio diferente, dava pra dançar sozinho, mas eu chamei Maria. Maria tinha os olhos verdes e o cabelo preto - que ela pintava das mais diferentes cores - e sorria pra mim sem motivo. Eu também sorria sem motivo enquanto meu peito tentava fingir que não ligava. A verdade é que, em momentos como este, percebo como a presença dela era importante para o meu bem estar.
Eu sinto falta de Maria.
Estando ali, nada mais importava. Eu e ela ao som da jukebox, apenas um minuto e meio fui feliz. Os jovens que jogavam sinuca começaram alguma briga acalorada pelo álcool, a música parou e um deles quebrou taco nas costas do outro. Pessoas começaram a sair de perto e a próxima canção era Johnny B. Good. Olhei para ela, rimos apavorados da situação e saímos do bar sem pagar a conta.
Naquela noite não fomos pra casa. Minha irmã, com quem eu morava, estava viajando, mas estávamos muito bêbados pra conseguirmos dirigir até em casa, então dormi com Maria olhando as estrelas. Se perguntassem pra ela, ela diria que foi dentro do carro e não dava pra ver estrela nenhuma, mas eu sou um romântico.
Ou fui.
Paro e meço minha pressão. Posso estar velho e doente agora, mas nem sempre estive assim. Queria eu ter sabido morrer enquanto era tempo, de uma vez só, pra encontrar Maria no céu. Hoje em dia eu não vou pro céu e, quanto a morte, virou uma velha amiga - que, por sinal, ainda me deve uma última visita. Esta, por outro lado, parece nunca acontecer.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Por quê?

Porque a madrugada fria só exibe a doce solidão presente no teu rosto quando a amargura fita o passado. Porque o passado ainda escorre pelos cantos dos teus olhos e o meu nome ainda faz vibrar teu ser, como um chamado - um eco de nós dois - que, nas madrugadas frias e na solidão dos domingos, ainda respira, mesmo com todos os esforços: meus, teus e nossos, para tenta-lo sufocar.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Falta.

Os meus calos têm resquícios de ti e minha boca quase te diz sem a minha permissão. Meus olhos guardam um vazio tênue, um espaço em branco reservado apenas para a tua imagem. A minha mente, por outro lado, não para de te ver em toda esquina, a cada rosto desconhecido, a cada sorriso... E quando o sorriso é teu, minha respiração para. Quando o rosto é teu, minhas folhas murcham e caem, quase que instantaneamente, enquanto tu segues. Quando te sonho, tenho febre  e, ao acordar, minha pele adormece, recusando a tua ausência. Tu és meu único porquê de bondade, e meu único quê também. Pois o mundo já tirou-me tudo, mas em ti guardo meu maior pesar. Não é a tua falta que sinto: é a minha.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Pertencer.

E o iminente se arrasta, levando consigo o mal da rotina. Por quanto tempo pode-se viver preso a uma ideia sem que, por júri público, esta seja considerada prisão? O que é menos livre do que nascer pra pertencer a uma máquina que não respira, não descansa e não evolui? O que é menos humano do que pertencer ao sistema?

terça-feira, 3 de maio de 2016

b&w

Tudo que eu respiro é cinza
o muco, o sangue, a dor
passo a mão na barba raspada
ando meio sem cor, não acha?
sem cor, sem som, sem vida
está frio aqui ou sou eu?
não há resposta
o café está esfriando
ou a água ainda não esquentou
eu não consigo mais dormir
ou não quero
e eu não vou lá pra fora
porque chove
ou não quero.
o brilho nos meus olhos foge
como todo o resto de mim
estou andando sobre o nada
enquanto a vida passa,
enquanto o mundo vai sofrendo
eu vou vivendo nesse preto e branco
estático e imutável, ultrapassado
como uma câmera velha
como um cachorro doente.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Don't.

Life is a joke.
Laugh about it,
Talk about it,
It won't get better
untill you find a
( ) better
( ) bitter
           way to tell it.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Tomás Roberto Saraiva

Ainda tinha um tanto de pó não vendido no bolso de moedas da minha calça jeans, alguns gramas do verde-mais-verde e um punhado de notas amassadas. Joguei tudo sobre o móvel enquanto fazia as contas do quanto eu ainda poderia beber.
Muito.
Abri uma garrafa de Dreher e entornei-a sobre o copo. Bebi um gole e me arrependi instantaneamente. Peguei o telefone e tentei ligar pra Priscila.
- Oi.
- Oi!
- Como você ta?
- Ah eu to bem, por onde você tem andado?
- Tenho trabalhado demais.
- Hahaha. No que exatamente?
Desligo.
Não há nada a ser explicado, não existe desculpa plausível e eu sou perfeitamente capaz de desperdiçar meus esforços bebendo ao invés de inventar alguma. Caso comecem a investigar, eu tenho vendido gelo. Gelo não gera lixo, não gera notas fiscais e, como poucos sabem, não gera lucro. Mas a ideia do gelo não veio de mim não, veio de um outro eu que eu conheci. Nessa profissão, a gente acaba conhecendo outros, sabe? Faz parte de saber o que está acontecendo no mercado. Felizmente, pra mim, poucos desses outros sabem o que eu faço de verdade.
E eu não estou falando sobre vender gelo.
Pego o telefone de novo, dessa vez ligo pra Anna.
- Alô?
- Olá.
- Oi, quem é?
- Thiago aqui. Rosa.
- Ah, oi! Tudo bem?
- Meh... tudo indo, e por aí?
- Ah aqui ta tudo normal, muito serviço e muito calor, sabe?
- Sei sim. Mas pelo menos ta ganhando bem?
- O de sempre. E você, ainda naquilo?
- Sempre, né.
- Aliás, eu tava precisando falar com você mesmo.
- Já?
- É, ta acabando...
- Olha, Anna, você tem que tomar cuidado... Desse jeito vai acabar se descontrolando.
- Eu sei, eu sei, mas não é pra mim... Olha, você pode me encontrar amanhã?
- Posso sim, que horas?
- Três.
- Ok.
- Coffee Shop?
- Coffee Shop.
Desligo.
Anna é uma dessas pessoas legais de transar, mas que nunca vão chegar a lugar nenhum na vida. A minha presença não é lá uma grande ajuda nesse aspecto, mas não há muito a ser feito. Se não for eu, serão outros, tanto na droga quanto no sexo. "Rosa" não é o meu sobrenome de verdade. É só uma junção da primeira sílaba de cada um dos meus dois outros nomes "Roberto" e "Saraiva". Thiago também não é real, mas não é junção de merda nenhuma.
Meu nome é Tomás. Sem H.
Bebo mais um gole de Dreher tentando não pensar no gosto. Aspiro o resto de pó sobre a mesa e começo a me sentir absolutamente bem.


Apago.



Acordo de manhã no hospital. Um médico se encontra do lado da minha cama fazendo anotações sobre outro paciente. Olho pros meus pulsos: não estou algemado. Isso deve ser um bom sinal. Viro de volta pro doutor:
- Ei!
- Olá, senhor... - breve pausa enquanto olha o caderninho - Tomás. Como o senhor está se sentindo?
- Com uma puta dor de cabeça, mas o que houve?
- Olha, não sou eu cuidando do seu caso, mas a ficha diz que você teve um princípio de ataque cardíaco.
- Ah é? E quem me trouxe aqui?
- Não sei - disse ele, já se afastando - mas vou chamar o Glaucio.
Glaucio devia ser o médico encarregado, porque logo depois ele chegou com uma cara amarrada e me explicou o que tava acontecendo. Aparentemente, eu comecei a me sentir mal depois de beber e chamei por socorro. O vizinho me ouviu gritando, arrombou a porta e me touxe até aqui.
- E onde estão as minhas roupas, doutor?
- Elas estavam cheias de vômito e bebida, então as colocamos em um saco pra que o senhor possa lava-las em casa.
- Vocês não tem lavadora aqui?
- Infelizmente, senhor Tomás, só vão pra máquina os uniformes médicos e afins, para evitar riscos de infecção.
Infecção é o meu ovo.
- E quando eu vou ter alta?
- Logo logo, senhor Tomás, vamos só fazer algumas perguntas sobre o que houve e já já estará livre.
No hospital, ainda tive que inventar explicações patéticas de como eu era um desses viciados que não conseguem se livrar da droga, porque minha vida era muito triste e minha mulher tinha me deixado, etecétera e tal. Mas o que eu queria dizer era o seguinte:
"A grande verdade, senhor Glaucio, é que eu vendo drogas para as pessoas que passam por essa situação e, se eu acabei aqui, é por mero descuido, afinal, sei bem com o tipo de substância que estou lidando. Agradeço a preocupação, mas preciso que o senhor me dê alta logo porque tenho clientes importantes me esperando."
A essa altura, Glaucio já teria discado o "9" de "190" no telefone.
Mesmo não tendo clientes me esperando, consegui alta e peguei um taxi pra voltar pra casa. O taxista exalava cigarro de todos os seus poros, mas os únicos cigarros em minha posse estavam, nesse momento, parcialmente vomitados e cuidadosamente embrulhados em uma sacola plástica dada de bom grado pelo Hospital Maria Tereza.
Chegando no apartamento, tudo estava quase exatamente como eu deixei, mas um pouquinho mais bagunçado. Aparentemente, alguém chamou a polícia - os boatos espalhados aqui no condomínio sobre a minha profissão estão ficando cada vez mais alarmantes, mas não posso fazer nada a respeito, afinal, se o porteiro noturno não fuma, ele não dorme e, se ele não dorme, ele também não me deixa dormir. É uma questão de sobrevivência e praticidade, sabe? Ele me dá dinheiro pra não fazer o próprio trabalho, eu aceito o dinheiro dele por estar muito feliz fazendo o meu.
O TELEFONE TOCA MUITO ALTO E PERCEBO QUE a minha dor de cabeça ainda não passou.
- Alô?
- Porra, você ainda ta em casa? - é a voz de Anna - To te esperando há quarenta minutos aqui.
- Puts, desculpa, eu esqueci.
- EU NÃO ACREDITO que você fez isso de nov-
- Calma, calma, eu to indo praí. Coffee Shop, certo?
- Certo.
- Chego em dez.
Cheguei em vinte. A cara dela não estava nem um pouco bonita e nem era pelo mau humor.
- Aonde você tava, porra? Eu to te esperando aqui há séculos! Trouxe a parada?
- Calma aí, Anna, o que aconteceu com você?
- Lhe pergunto a mesma coisa, senhor alcoolismo. Isso na sua cara é resto de vômito?
- Vômito? - Pergunto, passando a mão na bochecha - Muito provavelmente sim. Mas não foi isso que eu perguntei. Você anda comprando de mais alguém?
- Não. - Ela responde, desviando o olhar. - Só de você, sempre foi assim.
Olho pros seus olhos. Se eu acreditasse que existe um momento específico em que a esperança deixa alguém, como se uma lâmpada se apagasse no fundo da sua alma e deixasse tudo cinza escuro, eu diria que isso aconteceu com a Anna desde a última vez que nos vimos.
- Quer saber? - digo - Mudei de ideia.
Que? - Instantaneamente, seus olhos se arregalam como se fossem saltar de suas órbitas e suas mãos começam a tremer. - Não, você não pode fazer isso.
(Como assim não posso?)
- Eu posso e vou.
- Não!
- Sim.
- Eu PRECISO disso, Thiago, olha pra mim - ela responde, me agarrando com mãos frias e finas - eu PRECISO que você me dê só mais um pouco, eu vou morrer!
- Me solta, Anna! Sai daqui, porra!
Tento puxar minhas mãos, mas isso só faz com que meus pulsos doam. Olho pro rosto de Anna e algo não está certo. Então, sem mais nem menos, sua pele começa a derreter e sangue brota da sua boca e nariz. Tento me soltar, inutilmente. Todos estão olhando pra mim agora. Todos sabem que fui eu quem vendeu pra ela. Todos sabem quem eu realmente sou.

Acordo gritando.
Estou no hospital. Tudo aquilo não passou de um sonho. Olho pro meu pulso esquerdo e estou algemado. Não muito distante de mim, um médico responde algumas perguntas a um policial.
Dessa vez não é o Glauco.

quinta-feira, 31 de março de 2016

nem mais um pingo

não importa com quem eu fico além dela
só vale quão bem eu finjo
quão bem eu beijo
quão bem eu fodo
e se a digo "amo", então
eu amo, que amor seja
que amor venha e que amor vá
que venha amor até tudo acabar
e nem um pingo a mais depois.

quarta-feira, 30 de março de 2016

refúgio

De qualquer forma
a escrita é onde busco abrigo
ao refugiar-me da tua voz
como se intoxicasse-me de nós
em adesivos de nicotina
destinados aos ex-amantes
para controlar delírios;
como se, ao vomitar tua ausência
e te encaixar em palavras
eu não mais pudesse senti-la
ou não mais precisasse sentir-te
no vão entre um dedo e outro,
entre um trago e dois;
Escrever-te é, portanto, fuga
não cura, mas anestesia
pois ter-te pura, em poesia
borra a vista ao te ver passar.

terça-feira, 29 de março de 2016

brasa

não sou nada mais do que um cachimbo
e meus pensamentos são fumaça
e a literatura é meu fósforo
que me queima e me estala
que me esvazia pra que eu possa ser
novamente preenchido de agonia
de dor, de esperança e de rima
quero ser fumaça de amor
desses que começam com uma simples
brasa
e acabam em cinzas
e esvaziam a gente
pra depois encher de novo.

mas sabiste?

que se te desejo não é pelo vazio que sinto entre um órgão e o outro nos momentos em que a solidão abraça e os acordes de uma música qualquer me atingem,
que se te suspiro não é por uma idealização do passado? Segue: em parte, por meu ideal imaginário não ser tão detalhista a ponto de te fazer, em mente, mais do que as tuas palavras fazem nascer em mim, na vida, ver-te idealizada é impossível - cada parte de ti transcende do adequado e beira à perfeição, cada ausência tua é tempo desperdiçado em um espaço curto demais de período vitalício (meu), cada contato externo é menos prazeroso do que o teu sorriso,
que se o abandono de nós foi resultado meu, só me resta rezar para que cada lágrima derramada volte ao remetente, que todo o tempo entenda a razão do meu sofrer como sendo mais sincera do que a maior parte da minha própria existência e que isso o faça voltar - para que então eu possa errar de novo (pois o passado não muda, má cherie) e ao menos reviver tudo de importante que deixei pra trás,
que a simples poeira mnemônica de nós dois é capaz de alimentar meus sonhos por milhares de vidas e que todos os teus defeitos não são nada se comparados à dor de não mais precisar aprender a lidar com eles um simples dia sequer,
que às vezes penso nas tuas palavras como despertando-me do transe em que eu me encontro na maior parte da vida e no teu toque como razão de um universo só meu
e que secretamente te desejo?

quarta-feira, 23 de março de 2016

histórias de bruxa

segura-te em mim agora
que te dirão mentiras
e agarra-te nas verdades
que vistes de mim em carne
ignore as fábulas, os contos
os monstros atrás do armário
pegue na minha mão e ame
e que minh'alma não seja
as roupas que visto, estas
estão em frangalhos!
e que meu cerne não seja
tudo que dizem e repetem
nesse mantra de estupidez
e que minha vontade – esta sim
 – seja verdadeiramente pura
como os teus sorrisos
tuas bocas, tuas caras
teus carinhos, tuas marcas
teus cabelos, teu amor,
que seja eu esse tal amor
e não as fábulas, os contos
nem os monstros atrás do armário.

domingo, 20 de março de 2016

1- Putrefação

E dos bueiros vou guiando
minha vida sem sentido
correntezas de dejetos
infestam os narizes dos passantes
e os passantes vão embora,
a loucura se instala e
como se de casa, fica.

2- Nostalgia

Meus grãos de areia
foram levados pelo vento
e agora perdido no tempo
eu crio, recrio, refaço
como um reflexo
de um reflexo de um reflexo
de um reflexo de nós dois.

3- Indiferença

aos poucos me tortura
a simples ideia de convivência
e me atormentam as palavras
dos antigos e queridos, queria eu
poder dizer a vós o quão pouco importam
nesse meu novo mundo de dor
au revoir, ma empathie!

sexta-feira, 18 de março de 2016

íntegro

meu corpo se desintegra
diante de uma enorme
indiferença
indiscrição
eu sou uma inconstância
indecorosa e ofensiva
fumando cigarros e mais
bebendo um gole de tudo
e qualquer coisa
diluído em sequidão
minhas palavras não vingaram
e meus versos não rimaram
o que será de mim agora?
ha ha ha

segunda-feira, 14 de março de 2016

Cegueira

O cego que manca
o próprio canto, canta
mudo e ouve surdo
toda tarde que tarda
vendo o vir a ser
seu pôr-do-sol
sem saber mentir
sentir, ventar
cantar, viver
enxergar.

terça-feira, 8 de março de 2016

(sem título)

Começa como uma sensação de perda, como se algo tivesse sido deixado pra trás numa cafeteria ou no ponto de ônibus, mas onde foi? E aí você começa a se perguntar a quanto tempo tem sido assim, tudo cinza. Percebe que todos os seus amigos notaram, de uma forma ou de outra, que o mundo não é aquilo de antes, que os prazeres já não têm gosto, que a vida não tem sabor. Mas onde foi que eu esqueci a minha dor? Nela habitavam todas as minhas lembranças ruins - como aquela em que você derramou café na minha perna de propósito, lembra, amor? - e também as boas. Afinal, não existe nada de extraordinário na felicidade sem a tristeza. Não há valor na companhia sem a solidão para lembrar sua falta. Não há valor no sorriso que não derramou lágrimas e, mais importante, não há valor no guerreiro que não fracassou em batalhas.

best-seller

Eu vou guardar um pouco da amargura na gaveta de baixo do meu subconsciente e misturar auto-depreciação com sarcasmo pra forjar um falso amor próprio e exibir a todos os meus familiares. Enquanto isso, meu humor ácido vai corroer tudo aquilo que sobrou de útil nessa sopa de conhecimentos superficiais e transformar minhas experiências pessoais em uma teoria sobre a verdade absoluta do universo em que habito. A nicotina vai me ajudar a fazer o serviço enquanto as substâncias psicoativas presentes no meu cérebro quebram os paradigmas sociais necessários para continuar sendo respeitado por pessoas com quem eu não me importo, mas não tem problema. Depois que a própria consciência for desconstruída e vista como uma ideia mal formulada pela minha própria consciência, objetos diários vão começar a parecer bem mais coesos do que seres humanos diários e algumas questões se resolverão por conta própria. Como resultado, a cafeteira tentará impor ideias de produtividade e a cama se tornará a maior escritora de romances juvenis do século, alimentada por promessas sem profundidade ou significado - sussurradas meses antes a mulheres cujo nome eu não me recordo ou não me importo. As paredes discutirão abertamente sobre a definição de vida e a mesa de cabeceira desenvolverá uma atração pelas molas do colchão em que eu durmo. Aos poucos, tudo será refeito de uma maneira completamente nova e sem significado, quebrando e refazendo a lógica até não sobrar nada que possa ser dito como "lógico". Meus medos se tornarão minhas verdades e novamente meus medos, minhas certezas desaparecerão em poeira cósmica e a sensação de vazio será substituída por um real espaço em branco no meu cotidiano. Estarei finalmente completo e delirante, tornando-me deus-de-nada ou, por associação, deus de mim. Coincidentemente, "nada" é a quantidade de planos muito certos nessa vida, então o plano B é, obviamente, encaixar o cano da arma na parte superior da minha arcada dentária, puxar o gatilho (literal ou figurativamente) e desenhar um mapa da minha mente conturbada na parede lateral da cama em que eu me encontro. Isso deve dar a ela inspiração o suficiente pra escrever um best-seller da minha vida.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Anna

Minhas palavras
Rebelaram-se na língua
E silenciaram-me:
Que, de sujo sou,
Não é direito meu
Falar-te
Mas desejo,
De trás pra frente
Sublinhado e
De todos os jeitos possíveis,
Tentar.

Amigo Imaginário

Eu sou a constante de rejeição humana
Vagando por entre medos e outros nós.
Sou o cigarro fumado sem vontade,
Sou os agudos das notas da verdade,
Sou todo motivo de dor, sou todo dó.
Eu sou um interminável vazio existencial,
Sou as entranhas derramadas de Deus.
Eu sou litros de uma humanidade podre,
Sou o grunhido da morte, sou cativo,
Sou ativo e sou passivo, sou permissivo
Não permitido por lei, por bem ou por mal,
Ilegal, vicioso, tendencioso e imoral;
Eu sou tudo que a sociedade apoia.
Sou um sem teto, sem medo nem vontade,
Eu sou a cortina que esconde a claridade,
Sou o cativeiro, sou a doença, sou a morte.
Sou os loucos que perderam-se na sorte,
Eu sou o ontem, o hoje e o amanhã.
No sufoco, quando atravessa a epiderme
Eu sou a vaga noção que me restou.
Não tente fugir de mim, criança,
Eu sou aquilo que você criou.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Cores de um quadro cinza.

E então, às sete e meia da manhã de uma segunda-feira abafada, seu peito se abriu — sem mais nem menos — de dentro para fora, espalhando emoções por todas as paredes do quarto. José já não era o porteiro, o trocador, o taxista ou o poeta. José era a própria vida, espirrando cores e lágrimas por cada canto daquele quarto cinza. Talvez fosse tarde demais, alguns diriam, talvez agora, depois de tudo, de nada mais valha a morte — ou a vida — desse pobre josé-sem-nome, mas não pra ele. José deitou, tentou ajeitar-se, de peito aberto, e desabou em lágrimas. José agora era livre para chorar, então sorriu. José agora era livre para viver, então morreu.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Abóbora

Então descobre
o rosto encoberto de
mágoas, afaga meu
peito e me fere em
rancor, quem deu teu
direito de não mais
estar entre o abismo
e a dor que o pouco me
traz quando a falta que
faz engole o meu sentir?
Não vou mais ficar nesse
teu ir e vir de palavras
e sonhos, sou todo teu,
torto, sou todo teu,
morto e sem rima,
triste e perdido,
quebrado,
sentido,
alegre,
deprê.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Nua e crua.

Essa é a parte onde eu defeco sobre as suas aspirações, sonhos, ideias e leis morais para que a sociedade possa progredir ao enxergar que esse modo é puramente animal e ilógico, impróprio e inadequado para todos aqueles que ainda habitam o nosso ambiente. Piso com meu calcanhar da verdade e da ciência, da filosofia e do entendimento, sobre os tantos que não conseguiram progredir em escala aritmética, tendo permanecido iguais ou praticamente iguais ao longo dos anos passados.
Eu não admiro vocês.
Eu não suporto vocês.
Eu quero que vocês se fodam.

Outono

Tuas folhas acariciam minha pele
E batem na calçada, secas,
Amargas e sem cor, não é
Outono, amor, teu verão é gelado
E o desespero arrepia a nuca
Enquanto o calor que exalo
Apenas seca as tuas folhas.
Sara desse cinza que te guia,
Lê minhas palavras de apelo,
Agonia-te por tristeza ser sentir
E sentir ser tudo que eu te peço.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Às vezes eu vomito sentimentos em um pequeno pedaço de guardanapo

Alegria-te pelo sorriso que eu te tenho
E chora-me torrencialmente
Desespera-nos na falta de nós
Afoga-me em medo e me engula
Por desejo de engolir-me-ter
Agonia-te por tristeza ser sentir
E sentir ser tudo que eu te peço.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Centavos.

De repente eu me sinto uma moeda de dez centavos que caiu num bueiro da rua mais movimentada do Rio de Janeiro. Eu com meu cigarrinho amassado no bolso de trás e dez reais jogados de qualquer jeito na carteira, eu com a roupa amassada de ontem e com o hálido de sexta-feira. Eu que me apaixono por cada par de seios que esbarra comigo na rua e me joga um sorriso despretensioso. Sou o mesmo cara que acabou de ser deixado no esgoto junto aos ratos, o mesmo verme que se matou sem morrer de verdade - ou que morreu de verdade sem precisar se matar. Sou um pontinho flutuante de poeira universal flutuando pelo universo, sou uma moeda de cinco centavos sendo arrastada pelo esgoto — e eu nunca me senti tão bem.

Lúcido.

Distancio-me da realidade chula e exploro as lacunas do meu subconsciente. Abro os olhos e lá estou eu; feliz caminho pelos pastos verdes vidrantes e sinto o vento vibrar a grama nos meus calcanhares. Não é grama e não é vento. O pouco que sei desse lugar é suficiente pra ser considerado um quase nada recheado de fantasia — estou sonhando. Dobro os joelhos e desliso a mão pelo capim. Posso sentí-lo crescendo e espetando a pele entre um dedo e outro, mas não exatamente. Tudo aqui é tão real quanto uma lembrança e tão palpável quanto a imaginação permite — não o suficiente. Arranco pedaços verdes de sonho e começo a correr em direção a um imenso precipício. O que acontece se eu estiver errado? Que garantia eu tenho de que não estou alucinando de novo?
Nada.
Então eu pulo.

Acordo no sofá cinza da minha casa. Não passa das três da manhã. Meu corpo está descansado, mas meu cérebro ainda sente o entorpecimento da queda. Levanto-me vagarosamente e ando em direção ao meu objetivo de vida — a geladeira. É estranho que o mundo seja bem menos do que desejamos que ele seja e que a luz do meu viver não seja nada mais, nada menos do que a lâmpada dessa geladeira velha e ranzinza. Procuro a manteiga, mas não encontro. Sento-me no chão — ainda com a porta da geladeira aberta — e começo a chorar. Nada é suficiente pra me fazer querer estar aqui. Eu preferia estar sonhando. Desabo em lágrimas e deito o rosto no azulejo frio da cozinha, iluminado pela geladeira vazia com meus olhos cheios de dor. A lâmpada que mostra a geladeira é a mesma que me expõe ali, no calar da noite — a geladeira é a minha vida. Fecho-me perante o mundo para economizar esforço, ando em direção ao banheiro e seco as minhas lágrimas. Penso em acender todas as luzes da casa, mas não preciso disso. Meu lar é a escuridão. Abro a última lâmina do pacote e desenho um enorme T em cada pulso.
Mas não sangro.

Acordo. Tudo está de volta ao normal. O mundo volta a girar e logo logo eu vou voltar a dormir. Ainda assim, tudo que eu vejo é tão real quanto uma lembrança e tão palpável quanto a imaginação permite.

Vir a viver e viver de vir a viver.

Ato I

Sou vi
mais do que sou sei.
Mais de viver cansei
Que de saber eu vi
E vi que nada sabia
Antes de saber ouvir
Por não saber saber.
Sou vir, ver e verei
Mas de ser saber
Não sei.

Ato II

De que me serve ser
Se ao saber viver
Eu não soube ver
Que não vi saber?
Eu mais vi sofrer
Sem poder não ver
Do que vivi viver!
Quero só não ver da dor
Que já vivi de ver
E já vi de viver
Mais do que eu sei dizer.
Quero não viver o eco
Que me faz querer não ver
Quão pouco vivo enquanto seco.

Ato III

Perco-me no não me ver
E entorpeço-me no não saber
Vivo sem saber viver
(Vir, ver, ouvir e haver)
Apenas no prazer de ser,
Vivo pra querer dizer
"Sou saber, prazer".

Nutritivo

Pego um pedaço de mim
E cuspo de volta no prato.
Pego um pedaço de ti
E engulo.

Bebo pessoas baratas
E caras,
Uso camisas baratas
E velhas.

Rasgo minhas roupas,
Coloco na boca e mastigo.
Engulo com água e choro.

Vegetais fazem bem.
Amar,
Nem tanto.

Meu quê

Meu quê de ti me espanta
E encanta a quem não deve
Quero que o quê me leve
Deste lugar sem jeito
Que me encolhe o peito
(Samba, samba)
E por favor, não vás embora
Que eu só quero agora fugir
Pelo mundo afora e sentir
Em mim, meu quê de ti
(Samba, samba)
Sem voz eu vou guiando
Meu coral e descascando
Vou-me desfazendo
Sem ter meu quê de ti!

Caixa

Enquanto minhas palavras fragmentam-se na dúvida de um futuro vazio, tuas certezas me concretizam como fracasso. Quebrei-me como um espelho - de mim surgiu uma imensidão de rachaduras, derivadas de um só ponto: tua presença. Meu sentimento é uma criança que decidiu brincar com o perigo antes de saber lidar com a dor, mas o óbvio se concretizou e, do meu universo pessoal, criou-se a antimatéria. Dividi-me em dois e perdi as duas metades: o sentir-me e não sentir evoluiram em seres que me dominaram e me regeram de aí em diante. Será que o próprio Criador sentiu o mesmo ao ver seus anjos rebelando-se? Será que a onisciência não pode ter descansado por tempo suficiente pra que a humanidade descobrisse o amor e por ele se instalasse o caos? Se da caixa que Pandora abriu sairam todos os males, por que não foi mencionado o amor, que destruiu paradigmas e civilizações, ideias e conexões existentes desde antes do próprio raciocínio?
Será o amor a própria caixa?

De forma alguma.

O que procuras em nós é o antídoto
Pra todo incômodo do teu passado vil
Subjetivado e objetificado em palavras
No pretérito imperfeito do subjuntivo:
Poderias ter-me querido e não quis
Ter-te-ia feito o bem que queres
Antes que o breu da morte nos levasse
Mas com pesar nos olhos hoje choras
Lágrimas tão lamurdiosamente fúteis
Toques tão desinteressantemente iguais.
Triste é teres escolhido ser repúdio
Quando dei-te meu querer por todo
- Tanto o fiz que eu hoje não desejo perto
Longe ou de forma alguma.