quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

rotineira

Ele acordou, abriu os olhos pesados e se sentou. Olhou para a cadeira quebrada, para o armário empoeirado e para as telas vazias apoiadas na parede. Levantou-se da cama sem arrumar os lençóis amarrotados e foi pro banheiro lavar o amarrotado do rosto. Escovou os dentes sem pasta e sem vontade de escovar, procurou os chinelos sem vontade de encontrar. Ele desceu as escadas descalço, sentindo o frio do chão tocar seus pés sujos com o calor da cama, de olhos quase fechados de dor e de sono.
Ele não gostava de acordar, mas acordou.
Colocou a água pra ferver e abriu o armário para procurar café. No meio das decepções matinais, do açúcar e dos biscoitos recheados, encontrou um restinho de pó que era suficiente pra dois copos de café forte. Não tem problema, ele pensou, eu só preciso de um.
Olhou para a mesa cheia de papéis rabiscados, abobalhado pelo sono enquanto a própria encarava-o com desprezo. Você de novo, ela diria, se a mesa soubesse falar. Sentou-se na cadeira, chegando os papéis pra lá enquanto esperava a água ferver. Duas ou três gotas escorreram do seu rosto, mas ele não sabia dizer se era choro ou rinite. O mundo estava dormente. Enxugou a cara o quanto pôde, tomou café o quanto pôde e voltou a rabiscar seus sonhos. Um dia eu passo isso pra tela, ele pensou, sabendo que nunca iria passar.

terra

Eu acredito que o mundo está mesmo no fim. Não um fim simbólico, mas um fim claro e absoluto. Aos poucos, a humanidade vai sucumbir aos caprichos da natureza, como outrora foi-se o oposto. Acho que o tempo se encarregará dos prédios, pontes e outros lixos produzidos por essa raça tosca. Talvez eu nem chegue até o final da minha vida, acho que não tenho muito tempo. Só acho uma pena que eu tenha chegado tão tarde pra testemunhar as maravilhas desse planeta, tarde para viver e para morrer. Talvez o erro da humanidade tenha sido tentar compreender, já que destruímos o que compreendemos, mas não tínhamos muita escolha, tínhamos? Eu, por exemplo, passo os dias lendo, estudando até o final. Talvez quando o mundo acabar eu tenha lido tudo que eu quero ler e feito tudo que eu quero fazer, não falta muito agora. Em breve tudo isso aqui vira pó, aí eu poderei me reencontrar com terra. Como deve ser fazer parte de um mundo em paz? Olhando por esse lado, eu mal posso esperar para que o mundo acabe. Só quero terminar de ler esse livro, mais nada.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

murcha flor

eu não estou me sentindo eu mesma perto de você. eu não acho que seja sua a culpa, isso tem acontecido sempre comigo, mas estar junto a você não me ajuda, entende? é como se eu já estivesse sozinha mesmo quando você está do meu lado, como se você nem existisse. às vezes fica pior do que isso, como se eu não enxergasse o resto dos seres humanos do planeta. eu brinco com meu cachorro de vez em quando, mas não é a mesma coisa. eu queria algo mais material, mais quente, mais afável. queria sorrir de novo, viver novas aventuras ou só ficar na minha mesmo. na verdade eu nem sei o que eu quero, então não faz sentido continuarmos juntos. não posso prologar algo que já está morto porque EU estou morta, ta? eu me sinto morta assim e preciso fazer alguma coisa a respeito. eu não vou dizer que não vou sair daqui dando pra todo mundo nem que não vou passar o resto da minha vida chorando em casa, mas tudo pode acontecer. estamos quebrando os parâmetros aqui e eu acho que isso é uma coisa boa. eu preciso de uma vida nova que talvez não exista e você precisa fazer o que quiser da sua vida. aliás, eu nem sei se é isso que você precisa, mas você que sabe agora porque a vida é sua, né? talvez a gente se encontre pelo mundo ou pela vida ou talvez você nunca mais queira me olhar de tanta raiva e de tanta vontade de cuspir em mim, mas QUEM SABE? é sempre um novo dia, eu estou começando o meu dizendo a verdade. talvez você concorde comigo, talvez não, mas eu preciso sair daqui, a mudança só vai começar quando eu sair dessa casa e da sua vida. eu não sou muito boa em despedidas, então eu vou deixar um chocolate aqui, mas você come se você quiser também, não precisa comer por minha causa. estou saindo, depois volto pra pegar o resto das minhas coisas, você pode me ligar se precisar de alguma coisa. tchau, adios, au revoir, good bye, sayonara...

to bem

a moça daqui da frente foi atropelada e tá no hospital. ela tem uma filha que tá tentando passar pra medicina em faculdade pública, mas ainda não conseguiu porque é muito concorrido. meu pai morreu quando eu era criança, minha mãe é viciada em pó até hoje por causa disso. moramos numa comunidade, mas não importa. o que importa é a família, né? quando eu era pequeno eu fui sair pra brincar com meu melhor amigo, mas ele tinha sumido. quando eu fui ver ele já tinha parado de brincar e tava vendendo droga no pé do morro. eu não ligo pras drogas, elas fazem as pessoas felizes! sair da rotina e etc. continuei brincando sozinho até ter que ir trabalhar e continuei estudando enquanto trabalhava, mas parei de brincar. hoje em dia eu só estudo, larguei o trabalho e os amigos, desisti de ajudar minha mãe e to tentando passar pra direito numa universidade federal. enquanto eu estudo, de vez em quando eu ouço tiros vindo daqui do lado. algumas pessoas que eu conheço morreram, outras continuam vivas. é foda.
mas eu to bem.

mais ou menos

Vou escrever todos os meus males e chorar todas as minhas alegrias. Eu estou cansado, triste e sozinho. Eu só quero mais bebida, mais cigarro, mais amor. Não ligo de parecer cliché, somos todos a mesma coisa. Não estou aqui para impressionar, eu só existo (se é que existo) para mim mesmo. Então por que o mundo à minha volta me afeta tanto? Por que a miséria me faz sofrer? Por que a covardia me estremece e por que a injustiça me corrói? Por que eu não posso ficar de braços cruzados enquanto todo o resto parece fazer a mesma coisa? Por que, enquanto eu procuro ser mais HUMANO, o resto vira as costas e finge que nada está acontecendo? Vocês são PODRES. O mundo é PODRE.

o vidro e a mosca

Enquanto eu escrevo, uma mosca tenta sair pela janela. A cena já seria desesperadora se eu não pudesse ouvir o barulho que ela faz repetidamente ao bater no vidro. A mosca não sabe que o vidro está ali, ela não reconhece o vidro. O vidro, por sua vez, não reconhece a mosca, mas não a deixa passar. Sozinhos, ambos não fazem ideia da fútil existência do outro, mas ambos se atrapalham.
O vidro por estar no caminho da mosca.
A mosca por estar no caminho do vidro.
Os dois por não me deixarem escrever.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Um saco inútil de covardia revestido de lixo.

Minhas palavras secaram e minhas expressões adormeceram na imensidão da derrota. Perdi por estupidez, tolice, brincadeira de criança. Deitado, eu relembro todos os motivos pelos quais eu deixo de levantar e choro. Eu choro apesar de todos os motivos que eu tenho para não chorar. A pateticidade do meu inimigo me aflige como nenhum outro transtorno, a imbecilidade do meu flácido e fútil rival me envenena com o ódio que nenhum homem deveria sentir. Como um homem - se é que a palavra se aplica a ele - tão tonto pode se encontrar em uma posição de tamanho prestígio? Como um verme pode ser classificado como Pai se não possui o mínimo de compaixão para com sentimentos alheios? Tal monstro não merece misericórdia, merece a jaula - mas não serei eu a colocá-lo lá. Não cabe a mim, e sim ao todo poderoso Deus, aprisioná-lo no mais fétido buraco do inferno ou dar-lhe o consolo de uma eternidade em paz. Cabe a Ele julgar, não a mim. Ainda rezo, mas rezo para que morra essa tal raiva, para que o ódio não corrompa todo amor que carrego aqui. Rezo para que meus sonhos ruins não se concretizem e rezo para que meu inimigo continue por perto. Rezo para que o tempo mostre meu triunfo perante um mau tão grotesco, perante uma ferida tão funda na moral humana - ou o que restou dela.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Il faut oublier.

Não vou lembrar
não vou lembrar não vou
lembrar
não
eu não vou
eu não lembro
eu não consigo lembrar
eu não vou lembrar
não vou
lembrar nunca
não devo lembrar
nunca posso lembrar
não vou
não posso
não devo
lembrar
mas eu já disse isso
lembra?

(a)

domingo, 18 de janeiro de 2015

Então...

Ele bebeu
Pra sufocar as mágoas que carregava,
Para esquecer a esperança que guardava.
Ele fumou
Esperando que sua alma secasse
E que o rouco da própria voz o acalmasse.
Terminou, acalmou os ânimos e dormiu.
Acordou enjoado e vomitou;
Vomitou toda a tristeza do mundo.
Ele chorou.
Chorou por toda uma vida
E mais um pouco
Viveu por todo esse choro
E mais um pouco
Pensando no quanto seria louco
Não chorar.
Lembrou-se de tudo que perdeu
E tudo que ele perdeu
Também se lembrou dele.
E então,
Quando não aguentava mais lembrar,
Quando as lágrimas começaram a secar,
Ele bebeu.


(a)

sábado, 17 de janeiro de 2015

Calmaria.

Eu rezo para que o bem atinja meus inimigos, pois suas maldades já não me ferem. Rezo para que meus opositores tenham a calma que tentaram tirar de mim, para que façam bom uso da dignidade que me roubaram - pois era a única que eu tinha. Peço perdão por todos os meus erros cometidos, por todos os tropeços sentidos - não por mim, mas por eles - e peço perdão pelo mal que eu um dia pedi que lhes acometesse. Desejo nada além de paz para aqueles que me feriram em guerra, nada além de ternura para aqueles que me receberam com asco. Desejo que a misericórdia me domine e que o ódio do passado seja consumido pelo amor que eu cultivo hoje. Desejo que meus medos não mais me adoeçam o peito, que a perversidade nunca mais me habite. Eu desejo, do fundo de minh'alma, que haja serenidade nesse mundo.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Inviável.

Eu gosto das tuas curvas,
Dos teus lábios, nariz...
Gosto do jeito como tuas sobrancelhas levantam
E de te imaginar abaixando,
E de como tu deves parecer de manhã.
Gosto do teu decote
E das tuas blusas transparentes.
Gosto quando tu te arrepias, do nada,
E passas a mão no próprio pescoço.
Gosto de quando te desconcertas
E de como não perdes a palidez das bochechas.
Gosto do teu aspecto frio, mas quente,
E gosto de imaginar o amor contigo.
Gosto de não conhecer a tua voz
(Mas não mais do que eu gostaria dela)
E gosto de não te conhecer.
Minha existência
Te arruinaria.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

astronauta

enxergo o final da minha caminhada. do parapeito, todos os prédios, casas e pessoas se tornam minúsculas, como se nunca houvessem tido importância alguma. as estrelas, no entanto, parecem maiores daqui - de certa forma, elas estão.
algo no ar daqui também é diferente. enquanto respiro, tremulo, como se eu estivesse mais leve. me sinto como a vela de um barco abandonado no cais, sem rumo e sem porquê. talvez eu pudesse sair voando se meu peito não estivesse tão pesado, talvez eu percorresse o mundo inteiro...
mas ele está.
fecho os olhos e dou o primeiro passo.
alguém algum dia disse que raramente é o impacto da queda que mata os suicidas.
dou mais um passo.
muita gente diz muita coisa.
e mais um.
quando eu era menor, eu dizia que queria ser astronauta. na verdade, eu só queria morrer realizando algo heróico pra salvar a Terra, como nos filmes de ação que eu via.
dou mais um passo.
(sem chão)
enquanto vôo, o sol nasce e os pássaros cantam. homens e mulheres despertam ou caem no sono pelo mundo inteiro.
minha boca está seca.
estou salvando vocês de mim.

.

Corvo.

Eu cravo minhas garras petrificadas na carne pútrida de meus inimigos. Respiro o miasma fétido, me delicio com os grunhidos de seus familiares histéricos enquanto exibo minha pança gorda. "OLHEM PRA MIM AGORA enquanto rasgo os restos de uma existência fútil " eu repito "OLHEM PRA MIM ou eu GRITAREI sob o canto dos desesperados e CUSPIREI em cima dos cadáveres!" Eu serei a causa dos seus lamúrdios como sou hoje a causa de sua REPULSA, eu serei a causa de seus gritos em agonia COMO SÃO HOJE O MOTIVO DOS MEUS.
Pois eu sou toda escuridão do mundo.
E, quando chegarem ao fim,
eu estarei dançando sobre os seus cadáveres.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Ma Paix.

E se minhas desavenças forem propositais?
E se o mal que espalho for minha paixão?
Caberia a mim somente o caos?
E a luxúria?
Estaria ela acima da minha compaixão?
Meu destino é na agonia?
Nos pecados?
Na libido?
Estaria em mim a raiz de todos os males?
(Seria a minha sombra o meu verdadeiro ser?
Seria eu o mestre da desgraça?)
E as mulheres que provei?
Que bebi?
Que amei?
O bem que eu as causei não me redime?
(Puisque le mal certainement me condamne...)
Mas e a moça?
Por que a desejo?
(Pourquoi je l'aime?)
É ilusão?
(C'est la peur de mourir seul?)
Não poderei tirá-la dos meus sonhos?
(Onde nossos corpos se chocam
e nossos olhos se conectam
pela primeira vez,
Onde sua boca abre
e a minha fecha,
e, como um trovão,
gozamos)
E se meus sonhos forem minha salvação?
Poderia eu então pecar?

sábado, 10 de janeiro de 2015

Inteiro.

Eu queria escrever, mas
tudo que eu escrevo
sai de uma vez como uma
confissão
ou tudo arrastado
silencioso como um
sussurro
Queria saber
dizer tudo pela
metade
ou viver metade daquilo
que eu desejaria ter escrito.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Bee Gees.

Olhei para o quarto tentando não pensar na arma apontada para a minha cabeça. Uma mesa, duas meias sujas, sapatos, fios de telefone, fios de computador, computador, cama, almofada, porta e poster dos Bee Gees. Nada de muito aterrorizante - fora os Bee Gees - muito menos mortal. Encarei o homem. Era um homem normal, assustado, não perverso. Não usa aliança, não ama, não vive. Só mata.
- ONDE TÁ O DINHEIRO?
Eu não poderia dizer onde está o dinheiro. Não por meras posses ou caprichos, mas eu tenho que pagar pra pessoas que REALMENTE vão me matar, não pra esse merda com uma arma. Pensei um pouco antes de responder, não queria falar nada que o ajudaria a encontrar a grana.
- TA DENTRO DO COLCHÃO, CARA, EU JURO QUE TA TUDO NO COLCHÃO
- LEVANTA DA CAMA E ME MOSTRA PORRA
Com um rápido movimento, segurei o braço dele e desviei minha cabeça, forçando-o a atirar na parede. Soquei-lhe as bolas enquanto arrancava a pistola da mão do filho da puta e dei-lhe mais uma porrada na cabeça com a coronha.
Apontei a arma pra ele.
- PRA QUEM VOCÊ TRABALHA?
- EU NÃO TRABALHO PRA NINGUÉM NÃO SENHOR NÃO ME MATA NÃO
Dois tiros no joelho.
Saiu mais sangue do que eu imaginava, uma mancha escura começou a crescer no carpete.
- Fala agora, não tenho muito tempo.
Esfreguei a pistola pra cara do filho da puta, rindo com a reviravolta na situação.
- TA BOM TA BOM EU FALO MAS NÃO ME MATA POR FAVOR
- ME DIZ O NOME
- EU TRABALHO PRO SENHOR MAICON ELE ME CHAMOU ATÉ AQUI
Filho da puta.
Três tiros. Um na cabeça e dois no peito.
Maicon é um nome escroto até pra quem quer me matar.
Coloquei a pistola na cintura, pisei na rua e acendi um cigarro.
Eu vou rechear a tua cabeça de tiro, Maicon.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Último.

O último cigarro não importa. O último trago de bebida, o último gelo, a última dose. Minhas mãos fedem à idade e meu suor fede à pobreza. As cinzas descansam sobre o copo enquanto as observo e, porque as observo, as cinzas descansam sobre o copo. Tudo à minha volta é um resumo da minha criação, uma interpretação errônea. Não possuo defeitos, e sim in-qualidades. Meu mundo é repleto delas porque MEU MUNDO SOU EU. Encontro mais meia pílula no chão e tomo antes de dormir. Uso água para engolir porque o whisky SUMIU do copo. Quebro a parede contra o copo - contra a parede. Quebro a cabeça contra o copo e crio o copo. Eu sou o copo. Sujo mais um bocado com minhas cinzas e vou para a minha última casa.
Aperto meu último gatilho e tudo vira luz.

Se minhas palavras te tocassem...

Se tua volúpia
não me suplicasse carícias,
se teus cheiros
não me afogassem a decência,
se a escuridão dos teus cabelos
não me fizesse mergulhar
na negrura de meus pensamentos,
se teus vermelho-lábios
não me acelerassem o débil peito,
se tua branca pele
não cultivasse a minha luz,
se tuas delicadas unhas
arranhassem minhas costas
como tua ausência me arranha,
se tua rouca voz
pertencesse aos meus ouvidos
como meus olhos
pertencem hoje à tua imagem,
seria eu
enfim feliz?