sexta-feira, 30 de maio de 2014

Disforme.

Culpo vós, ignorantes de todo o mundo, pela minha decadência e deformidade. Culpo aqueles que julgam ao invés de perguntarem, aqueles que temem a verdade, que temem o olhar da alma. Culpo tu, principalmente, por todo genocídio acometido pelos fracos, por toda descriminação sofrida pelos indefesos - Já não é suficiente? - pela dor que tuas palavras causaram, pela rejeição de tudo que é diferente. Tu, ignóbil ser, patético e imprestável, deverias saber, mais do que os imbecis não escolarizados e mais do que os cristãos patéticos, que a diferença é a melhor arma da evolução. Foi ela, com a surpreendente combinação de genes, que nos pôs aqui, e que, infelizmente, gerou seres humanos tão perversamente discretos em maldade quanto o senhor. Tu és a verdadeira abominação, a última cartada de um criador malévolo, para a destruição da bondade. Tu não mereces ser ouvido, como não fui merecedor de tua palavra. Repudio-te, como repudio todo mal-feitor disfarçado, por tudo que causaste a mim.
Tu, pai e destruidor de sonhos, és o verdadeiro monstro por detrás das cortinas.

- Quasímodo.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Curado.

Costumava cuspir na cara de todo imbecil que me aparecia apaixonado. Eu sei por que fazia isso, e temo que alguns também tenham percebido. Foi meu psiquiatra que descobriu o meu problema, há uns dois anos atrás, e desde então eu tenho vivido bem melhor. Acontece que, no fundo, eu sou um grande admirador de românticos e romantistas, pois sou um deles. Mas a vida já me fodeu de tantas maneiras que sinto ódio de pensar que existe algum idiota por aí exatamente igual a mim, mas feliz. Foi por isso que eu espanquei o florista na rua, o casal apaixonado e, inevitavelmente, tentei suicídio.
Mas esses tempos já se foram, e as coisas agora são diferentes. Descobri a origem do meu sofrimento,e hoje sou um novo homem.
Agora eu só espanco mulheres.

sábado, 17 de maio de 2014

Fedor.

Tua podridão
Vai além do fedor
Que teu cabelo mal lavado
Exala

Minha repulsa
Vai além da oleosidade
Da tua pele
E das cavidades
Da tua alma
Povoadas
Pelo odor da morte

Tua infelicidade
Excedeu o limite da razão
E teu conforto inexiste
No arrastar da tua voz rouca

Saia!
Imploro-te, pelo bem de todos
Vá recostar-te
Em outros cantos
Com outros ratos
Com os que te pertencem, querida...

Teu lugar não é em nós, poetas
Pois não enfeitamos loucura
Com crueldade
E sim com amor.

Mas em ti
Nenhum enfeite funciona.

Inquietos.

Tua sombra governa os meus mais sofridos sonhos, e tua alma sobrepõe qualquer desejo da carne. Eu, tolo e infantil, troquei felicidade plena pelas vicissitudes do corpo, pela protuberância de um prazer terreno. Eu, e somente eu, sou culpado pela infelicidade - tão minha quanto tua - que governa as regiões mais obscuras do nosso mundo abandonado de fantasias. Tua lembrança me corrói a sanidade, e me deixa à beira da falência moral. Tu és meu mais profundo arrependimento, o grito mais ensurdecedor de meus sentimentos, meu mais inquieto amor.

Desiludido.

Perdi o ar, inconsolável, quando aquela mulher sumiu da minha frente. Foi em um pub, ou uma livraria, tanto faz. Só a vi por alguns segundos, mas foi o suficiente para meu coração bater. Será que era real? Seria minha cabeça tentando me enganar? Me encontro num café ao lado, observando um casal apaixonado à minha frente. O homem se declara com cartas de amor, e a mulher retribui com sorrisos. Será meu destino observar a felicidade de longe, sem nunca alcançá-la? Ou será que o perfume é mais saboroso do que o gosto, e minha eterna insatisfação não tem cura? Talvez eu deva me afastar do mundo, me envolver com a solidão, e observar amores alheios, como estou a fazer agora.
Sorrio para a mulher dos sorrisos, e ela retribui.
Acho que ela me deseja.
Será o amor uma ilusão?

sábado, 3 de maio de 2014

Estrela.

Às vezes dá uma dor no peito, uma falta imensa, sabe? Como se um buraco negro tivesse nascido no lugar de uma estrela enorme que se apagou nas constelações da minha alma. E é esse buraco negro que não me deixa dormir sempre que eu me sinto desamparado. É a falta que você faz. Estou à procura do calor de uma luz que se apagou e não sei como seguir sem isso. Minha única solução óbvia é voltar pra quando você existe, não é? Ajeitar tudo mais uma vez antes de te ver partir... Mas ninguém fez isso ainda, então vou ter que ser o primeiro. Vou inventar um jeito de te trazer de volta porque esse é o único meio de me trazer de volta.
Se não for por isso, não tenho por que continuar, por que lutar contra o vazio que me puxa.
Você é a única força que me governa.
Você é a única estrela do meu universo.

-T.

Rascunho de Suicídio.

Eu não ligo pra minha vida.
Não ligo pra vida dela nem pra vida nenhuma.
Não tenho respeito por Deus.
Não tenho respeito por nada.
Quero que todos morram afogados na lama.
Quero que todos vivam afogados em mim.
Porque eu sou um merda, e vocês também são.

Cerveja.

Pedi minha última cerveja enquanto amargava o último cigarro. Odeio quinta-feira, é sempre uma bosta.
Enquanto derramava em mim as últimas gotas de esperança da noite, observei todas as pessoas ao meu redor. Homens, mulheres, todos desprezíveis. Sorridentes sem motivo, imbecis sem desculpa. Será que estarei eu condenado à eterna insatisfação da alma? Sou pior do que todos aqueles sorrisos falsos, mentiras e verdades disfarçadas que se escondem na madrugada de um bar. Sou um homem que não ama. Se já amei, não me lembro. Na verdade, de nada lembro senão o vazio, que me segue como a Lua. Sou parte homem, parte nada. Sou retrato de uma pintura abstrata, pintada por um qualquer sem criatividade.
Que se foda isso tudo, eu quero mais uma cerveja.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Pulso.

Zeca não tinha coração.
De leigos a especialistas, nada se podia ouvir do pulsar no peito.
Porque não havia nenhum.
Conforme o tempo passava, Zeca reclamava e entrava em depressão.
Porque Zeca não podia sentir, rir ou chorar.
Porque sabia que nunca iria amar.
Um dia, Zeca se cansou de ser tão frio e oco.
Pegou uma faca, cravou no peito e abriu uma fenda.
Zeca começou a cavar, cavar e cavar.
Zeca sentiu o pulmão respirar, sentiu o sangue jorrar, mas não sentiu coração nenhum.
Foi aí que Zeca tocou em alguma coisa que não era sangue.
Nem pele.
Nem osso.
Mas pulsava.
Zeca percebeu que estavam todos errados, incluindo ele.
Foi então que Zeca chorou pela primeira vez.
Porque percebeu que podia.