domingo, 27 de abril de 2014

Herói.

A escrita me corrompe como um processo de auto-destruição. Ao cravar cada palavra em papel, abandono a esperança do esquecimento, e me forço a reviver o pior para marcar-me ao mundo. Para o escritor, não existe porquês ou poréns: escreve por ser sua única opção. Já para loucos e masoquistas, é preciso um pouco mais de dor para que a tinta saia, carvão para alimentar a inspiração. É preciso, para meros mortais como eu, corromper o herói para dar vida à vilania.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Erro meu.

Cheguei e ela já estava me esperando.
Tira a roupa, falei.
Tirou.
Joguei ela na cama.
Você demorou demais, ela disse.
Cala a boca ou eu te enfio a porrada.
Ela riu.
Por que você ainda está de roupa?
Porque você ainda não tirou, respondi.
Erro meu, ela disse.
Sorriu e tirou minha camisa.
Você só veio pra me comer?
Vim acabar logo com isso.
E por que não acaba?
Erro meu, respondi.
Tirei a arma da cintura e atirei.
Queria tê-la comido antes.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Apelo.

Enchi seus quadros com minhas lágrimas
Espalhei minhas mentiras pelo chão
Vomitei minhas mágoas no quintal
Quebrei a porta, a estante, a cama
Joguei fora meus sentimentos de brincar
Pintei as paredes de desperdício
Bebi em dia de semana
Guardei meu sorriso na gaveta
Rasguei meus desenhos, meus textos, minhas músicas
Porque não tem ninguém pra ver.
Não tem ninguém pra me impedir.
(Onde está você?)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Gota, farrapo, grão.

Meus lábios, calejados de desejo, tremem perante a ilusão de um perfume teu rondando minhas roupas. Teu rosto se encontra lá, sempre que fecham-me os olhos e forçam-me a descansar nos braços da solidão. Tentei arrancar de mim qualquer gota, farrapo, grão, que fosse de ti, mas não pude. Com o choro, vem a melhora. Com a melhora, vem o esquecimento - e como posso me esquecer do amor? As lágrimas que segurei por ti só não foram maiores do que os mares que bebi sem ti, pobre menina. Pudera eu dar último adeus, para terminar o tormento em veneno assim que tu me desses as costas! Mas nem isso pude, Deus, por quê? Liberdade! Pois já cansei de clamar por misericórdia... Sem direito à melancolia, quem sou eu em Seu livre arbítrio? Ah, Aurora... Minha sanidade foi-me negada, tu resolveste poupá-la de mim! Por que partir sem deixar em mim a dor reconfortante de uma última lembrança? Sem a adorável sintonia dos teus toques perante meu olhar trôpego... Não te culpo, Aurora, por não saber culpá-la de nada. Mas tinha que ser assim? Deixar sem esperança de que o fim é eterno? O que faço de mim agora? Pra que seguir, senão contigo? Pra que morrer, senão por ti?

A Geladeira.

Abro a geladeira em busca de porquês.
Não encontro.
Fecho a geladeira, abro a garrafa já aberta e procuro de novo.
Bebo todos os porquês que encontro na garrafa.
Abro a geladeira.
Pego outra garrafa já aberta e a geladeira me fecha.
Bebo um gole e sinto a vida me dizendo alguma coisa.
Bebo mais um e sinto a vida me dar um soco.
Continuo bebendo até não sentir mais nada.
Tropeço em mim, mas a geladeira me levanta.
Quebro a garrafa na pia.
Quebro a geladeira na pia.
Abro mais uma geladeira e bebo mais um pouco de mim.
Fecho a pia e piso na garrafa quebrada.
Me abro perante a geladeira.