quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Appétit.

Tem um pouco de chocolate nas minhas têmporas
um tanto de saudade entre meus dedos
e esperança entupindo meus ouvidos

Meus sonhos têm uma pitada de açúcar
e uma onda de amargura me assola
asfixiando-me de azeda dúvida

Serei eu mais um bocado de frutas podres?
Faltaria em mim uma pitada de tempero?
Aceitaria-me então em teu paladar?

Ser ou fazer de ti juíz?
Provar do teu âmago joliz
ou servir-me à tua insaciável gula?

Imune.

tarde tranquila.
- quero tomar fluoxetina, ela disse.
- que que é isso?
- é um remédio que a pessoa toma pra ficar feliz, mas só mulher pode tomar.
- por que homem não pode?
- porque não, poxa.
- Anda, fala.
- Falar o que?
- Por que que eu não posso tomar essa merda?
- porque fica broxa.
- mentira sua.
- verdade.
- mentira.
- então toma, ué. vai ficar broxa e a culpa não vai ser minha.
- nenhum remédio pode me deixar boxa, essa coisa não é de nada.
- toma então.
tomei o remédio e esperei.
- E aí, ta broxa?
- ainda não.
- ta feliz?
- também não.
- ué, como assim? você tomou?
- tomei, porra. eu avisei que nenhum remédio ia me deixar broxa.
- talvez ainda não tenha tido efeito, faz quanto tempo que você tomou?
- duas horas.
- e conseguiu ficar de pau duro?
- como não ficar de pau duro olhando pra essas suas coxas?
- você deve ter tomado de um jeito errado... não ta nem um pouquinho feliz?
- to um pouquinho.
- aí! viu?
- ah, foi só impressão.
- então você deve ser imune.
- imune a ficar broxa ou a ficar feliz?
- os dois.
- é, talvez eu seja imune aos dois mesmo.

Ônibus.

ponto de ônibus qualquer, dia quente. depois de tanta falta de transporte público quanto de paciência, me vem um ônibus lotado. merda, pensei. não sei se os motoristas fazem isso de propósito quando está calor, mas minha próxima carta será endereçada a eles. peguei aquele mesmo, não tinha muita opção. tinha sido um dia cheio, daqueles que parece que não vão acabar nunca, sabe? pois é, vida de pobre é isso. já sabia que os primeiros a descer seriam os de classe mais alta, então fiquei perto dos mimadinhos. rico escroto só anda de ônibus se for pra ir até a esquina, meu pai dizia - e estava certo. os primeiros a descer foram eles, então eu consegui pegar o trono que era meu de direito. não era lá grande coisa, tinha um homem fungando atrás, mas eu não tava nem aí. tudo está bem dentro de um ônibus desde que você não tenha que ficar em pé.
eu estava ali há um bom tempo, já até havia passado da central. o ônibus já tinha esvaziado e a viagem tinha sido tranquila. foi quando esse desgraçado sentou do meu lado. já não gosto de quem senta do meu lado, mas ele não tem culpa, pensei. ele não faz por querer. mas acho que faz. será? suava como um porco, parecia que tava fazendo de propósito. quando sentou, abriu um sorriso pra mim assim, como quem sorri pra qualquer um. EU não sou qualquer um, meu chapa. Com aquelas nádegas borbulhantes e aquela cara de senil, não pude nem sentir pena quando seus inúmeros braços - camadas e mais camadas de gordura - encostaram em mim, lambuzando meu assento: pele, suor, sujeira, meleca, pobre, nojento, gordo. depois de três pontos, o desgraçado levanta com aquela cara de retardo só pra deixar um pouco mais de líquido cair em mim. filho da puta, pensei, ele fez de propósito.

Sobre nós...

Isso não é mais sobre a chuva, sobre Deus ou sobre as vozes na minha cabeça. Não tem a ver com os jogos que eu fiz, os planos que tracei ou as vinganças que executei. Não é mais sobre os mosquitos, as lembranças ou os ruídos.
Não é sobre a sua voz.
Não se trata do seu perfume.
Nem do seu cabelo.
Nem da sua boca.
Não é mais sobre os tantos cacos de vidro que pisei para chegar aqui, ou sobre as lágrimas que derramei.
Também não é sobre o futuro
(Pois não mais existe um).
Nem sobre o pretérito imperfeito e singular
De nós.
Não tem a ver com as estrelas.
Não se trata dos planetas.
Isso é sobre mim agora.
Só eu e mais ninguém.

podre

Fica aqui comigo nessa cama fétida
Nesse lar de puta
Em fim de carnaval

Fica aqui nesses lençóis rasgados
No colchão manchado
Nessa podridão

Fica aqui comigo
Nesse coitus uninterruptus
Nesse bacanal
Sendo meu voyeur

Fica nessa sujeira assim
Lambendo tudo aqui
Fica e não sai mais

Você me pertence
Você é o lixo que me cerca
É a imundice que me afoga

Te quero-me.

Te quero-me em cores vivas
Tão alegres, tão ativas
Te jogo-me na cama vil
Tão sincero, tão senil
Te bebo-me como veneno
Tão mortal e tão ameno
Te guardo-me com desdém
Tão carinho não faz bem
Te acabo-me em mais bebida
Tão querida quanto a vida
Te afogo-me de me amar
Tão quanto teu me desejar
Te mato-me pois te preciso
Tão quanto precisou Narciso.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Notas.

Essas notas já não fazem mais sentido. Nada faz. Nada jamais fez. Enquanto escrevo, a caneta que percorre o papel chora e a folha enruga, rasga, quebra - como você. Nas esquinas, prostitutas lamentam e viciados se abraçam. Hoje é um dia triste. Meus cabelos perdem a cor e minha alma perde o gosto pensando em nós. Nada foi e nada será completo. Refaço os caminhos de um passado não tão esquecido e tento ver onde eu errei. Não soube, não sei, não saberei.

domingo, 26 de outubro de 2014

Sob a pele.

Sob a razão do meu ser
sob minha inútil pele
sob meu domínio frustrado
sob meus medos
meus desejos
habita um ser.
E sob o efeito do mundo
ele chora.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

sem título

Minha pele já apodreceu nos teus lençóis e as moscas já rodeiam tuas lembranças. Meus restos se encontram espalhados pelo chão, pelas cômodas, pelas quinquilharias. Meu pulso só existe na memória do seu medidor de pressão, minha voz só existe nos ecos desta casa velha. Meus olhares estão por toda parte, mas não sobrou ninguém pra admirar. Teus cabelos, metamórficos como tuas vontades, já não aparecem pelos cantos como fantasmas da tua presença. Meu coração já se decompôs, meus ossos foram comidos pelo tempo, minha mente foi corroída pelo desvario. Não ando, não durmo, não como. Em termos gerais, não existo. Minha solidão perdeu o sentido porque não lembro como é não senti-la.
Ainda tem alguém aí? Sobrou alguém pra me ajudar?

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Família.

- Esta metamorfose adolescente estúpida não sabe nem ao menos escrever metamorfose. Olhe para esses cabelos, esses furos, essas manchas. Isso é cavalo velho, doente, ponto de abate. E esses dentes cheios de metal, o que é isso? Elástico colorido ridículo no pulso ridículo desse indivíduo ridículo. Isso me dá asco. Onde já se viu isso? Me diz? Criança idiota dessas querendo saber o que é certo ou errado? Não troca nem fralda, não sabe ser filha, vai querer ser mãe? E você, Dolores, apoiando essa palhaçada?
- Roberto...
- Estou fora, Dolores. Fora! Cuide desses dois você, eu me demito.
- Você não pode deixar de ser pai!
- Mas posso escolher não ser avô!

Lhe (me) partir.

Me peguei pensando em você. Será possível que suas mãos um dia abraçarão as minhas? E seu colo, será meu também? Nem sei se tenho idade pra colo, mas aceito ter. Quando eu chegar, ainda vou lembrar do seu sorriso? E se eu não lembrar, você pode sorrir de novo? Já não conheço mais os livros que anda lendo. Eles ainda serão mais interessantes do que minhas futilidades? Precisarei contar todas as minhas novidades ou você precisará contar as suas? E seu choro? Cessará com a minha presença ou será acordado por ela? Serei eu o primeiro a avistar você ou estará me esperando a todo instante do outro lado? Doeu pra você? Doerá pra mim? Partir - ou melhor, chegar - é tão difícil quanto ver você fazê-lo? Tudo aqui está irreversivelmente chato, como sempre. Se você pudesse voltar, eu traria, só pra deixar esse lugar melhor. Como sempre, tomaríamos um sorvete, mesmo que eles já tenham perdido o gosto. Será que a dor me passa? Eu sei que ela nem existe comparado ao que você sentiu. E se você não mais lembrar de mim? Eu tenho medo que esse resto seja tudo que me sobrou. Será que não estou perdendo nada? Será que você me deixou sem nada mais pra eu me apoiar? Será que eu ainda existo pra você? Será que você ainda existe por aí?

- T.

Us.

I am the rain.
I am the sun, I am the heat.
I am the lifeless part of nature,
The useless part of production.
I am the emptiness,
The solitude,
Buried alive by superfluity.
I am a part of you
And everything about you.
Don't come near me.
Don't get close.
But don't get too far.
While I am dimly lit,
You are all the brightness.
While I am filled with void,
You are everything, everywhere.
I can be the past
Because you are every future.

Because you are every "us"
And I am all the lonely people.

domingo, 12 de outubro de 2014

Mosca.

Eu não consegui escrever nada hoje.
Minha falta de inspiração se deve à ressaca de hoje ou à bebedeira de ontem.
Como já tenho muitos textos sobre não conseguir escrever, dedicarei este enredo aos sapos.
Comam-o.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Café derramado.

Hoje eu bebi um copo de suco e lembrei de você. É incrível como as coisas bobas como o cheiro de grama, os comerciais de TV e os degraus da escada me trazem a sua lembrança. Essa casa tem estado muito sozinha, precisando de cuidados. Não há mofo nas paredes - não que eu tenha reparado - mas há podridão nos cantos, eu sinto. Há esquecimento, café derramado na mesa, camisas velhas furadas, banho quente e lareira. E você, o que anda fazendo por aí? Deve estar feliz, pois não tem dado notícias... Vê se volta logo pra gente contar as estrelas e dormir na rede. Você ainda gosta disso? Eu espero que goste... Tenho que ir, estou fazendo um chá agora. Não sei se você vai conseguir chegar aqui antes que esfrie. Espero que chegue.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Pão dormido.

Eu não chuto mais os mendigos que encontro.
Eu já não xingo mais no trânsito,
Não cuspo catarro na rua
E já não mijo fora do vaso.
Eu não tiro mais meleca em público,
Nem olho pras mulheres que passam.
Eu não arroto depois que como,
Não durmo mais em conversas chatas.
Na verdade, não durmo hora nenhuma.
Eu não compro mais briga em bar,
Não como mais puta sem pagar,
Não peido em ônibus lotado.
A coisa ta tão preta pra mim
Que eu não faço mais piada racista
Com medo de me sentir ofendido.
(Essa foi a última delas)
Eu até parei com os jogos de azar
E parei de apostar em cavalos.
Também parei de esmigalhar insetos
E de atirar pedra em passarinho.
Já não como mais coisa do chão
E nem vejo mais pornografia.
A falta de vontade é tanta
Que até parei de comer pão dormido.

O que foi que você fez comigo?

domingo, 5 de outubro de 2014

Soberano.

Tuas aspirações descansam em minhas mãos.
Tuas inseguranças apontam para mim.
Teus medos, teus desejos e teus segredos são meus.
Teu passado é meu escravo.
Tua dúvida é alimento das minhas certezas.
Tuas obscenidades fazem o meu silêncio.
Tua leviandade teve fim em meu discernimento.
Tuas mentiras me assimilam plausível.
Eu sou mestre de mim mesmo.
Tu és servo da perdição.

sábado, 4 de outubro de 2014

Eu temo.

Eu tentei não temer, tentei abdicar esta parte de mim, mas eu sou esta parte. Não mais do que todos, e nem menos do que qualquer um. Sou apenas um ponto comum no gráfico, e eu temo. Meus medos são os mais genéricos - e talvez por isso os mais terríveis! - porque sou exatamente igual a todos aqueles que maltratei. Maltratei, talvez, não por desprezo ou maldade. Eu fui, por tempo suficiente, o carrasco, por medo de ter minha cabeça cortada. Mas aqui estou eu, não estou? Lamentando meus temores para um pedaço de papel. Não sei por quanto tempo resistirei a eles, ou se já sucumbi há anos, mas só hoje que os confesso. Eu temo a ausência daqueles que maltratei e, embora esta já esteja presente, me recuso a encará-la de perto. Temo que volte a emoção daqueles que amei, porque ainda os amo. No fundo do poço - do meu poço, no caso - estão todas as lembranças que lá deixei para que nada mais pudesse me atrapalhar a seguir em frente. Mas eu já cheguei no fundo do poço. Eu temo a morte dela e minha vida a posteriori. Temo não resistir à tendenciosa ideia de despedaçar-me no asfalto sempre que enxergo o mundo de um prédio alto. Temo também ser abandonado por superfluidades, mas temo ainda mais ser deixado por minha causa. Ser injustiçado é um temor de muitos, mas pra mim é um conforto. Por tanto tempo fingi não me importar, por esta ser minha única defesa contra o caos do mundo. Nada pode me proteger do caos. Eu cansei de não mais temer, e me arrisquei. Por me arriscar, temi de novo, e cá estou eu. Temo agora ser a última pessoa do planeta, ou que não tenha sobrado ninguém para me classificar como "pessoa". Este é o texto mais sincero que escrevo e ainda temo não ser sincero o suficiente. Minhas vontades foram moldadas ao redor do medo e agora eu não as sinto mais. Deve ser difícil, para alguém muito corajoso, enfrentar os piores males do mundo. Temo que seja pior pra ele, e temo que vá ser pior pra mim um dia. Eu temo tanta coisa... Será que não há mais ninguém para temer comigo? Será que eu posso dizer que estou aqui ou não posso dizer absolutamente nada? Será que o medo me fez perder a voz? Se sim, de quem será a voz que me fará perder o medo?