quarta-feira, 30 de julho de 2014

Só nós dois.

Bendita chuva, eu penso.
Qualquer proteção, dispenso,
Seguro de final precoce.
Toda gota, toda tosse
Aceito, abraço, confio
Me ponho nos braços macios
Da morte, que me curou.
Deixe o calor para outros.
Deixe viver para poucos.
Que o frio me acaricie
Antes que a solidão esfrie.
Somos só eu e a febre agora,
À espera desse fim célebre.
Só nós dois e a chuva.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Júri Popular.

Palavras tolas e repugnantes, foi o que eu me tornei. Estou sujo de todas aquelas que usaram sobre mim. São como parasitas, que grudam na pele e tiram minha força de vontade. Toda a minha personalidade vai se esvaindo, e o que sobra é esse bando de letras miúdas, repetidas e carrancudas, escritas de qualquer jeito, por qualquer um.
Por que escolhi ser escritor, afinal? Poderia ter sido diabético, deficiente físico ou hipocondríaco, anêmico, hemofílico ou bulímico. Escritor é o pior enfermo. Vive em seu próprio mundo, escreve como dá, quando dá e quando pode. Os únicos poetas decentes que sobrevivem a isso, à fome, à miséria e às críticas, vivem como prisioneiros da própria criação. Afinal, a escrita controla o escritor, e não o contrário.
E quando não escreve?, eu lhe pergunto. O que sobra para o escritor? Nada além de palavras de outros. Ah! E que outros vocês são... De quê adianta grafar minha dor, se já existem psicanalistas de plantão para me diagnosticarem com suas críticas fúteis? De que adianta uma opinião, se já me foi dito e repetido o que está certo e o que não está? De que lhes serve conhecer-me, se já leram minha sinopse?
Um bando de abutres, é o que são. Por não valorizarem a palavra, desperdiçam-na em tolos como eu.
O que farão, aos malignos, aqueles que julgam maligno tudo aquilo que os contraria?
O que será dos bons, se não sobrar o que os descreva?
Pra onde foi tudo que eu sou?

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Seco.

Eu estou
seco,
correndo
no eco
perdido
do fim.

Bêbado de
memória,
trôpego de
esperança,
eu abro meu
caminho

Nas ruas do
passado,
vomitando
as esquinas,
preenchendo
as lacunas

Com o gosto
de nós dois
e com pouco
do que fui
eu refaço
a solidão.

Vou beber.

Vou beber
que nem um condenado
que nem um desesperado
que nem um filho da puta.
Vou beber
até minhas tripas saírem
e meu cu se encher de terra
a terra que vai me engolir.
Até o mundo desabar
e até eu fazê-lo acabar
eu vou beber
e não vou lembrar de você.
E eu vou beber
até você esquecer de mim
esse bêbado que te deixou.
vou beber
até encontrar alguém
menos gostosa do que você
mas não vai fazer diferença
porque eu já vou ter bebido
o suficiente pra não saber.
Vou beber
o suficiente pra não ligar
pra sua casa quando acabar
toda a bebida do mundo.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Muito bom dia.

Estou à beira do abismo intelectual que me separa dos mais comuns e ignorantes. Depois de muito viajar, tanto em terra quanto em mente, minha boca secou, meus olhos cansaram e os músculos da minha perna se atrofiaram. Meu cérebro, por mais desenvolvido que seja, não aguenta mais um minuto de monotonia, chegando a optar pela falência de múltiplos órgãos a ter que esperar a chegada. Até o fim, já terei descarregado nas calças todas as excretas, e usado meu canivete cego para tentar suicídio, fracassando miseravelmente. Até lá, estarei velho e decrépito, e todas as lembranças que eu tenho se unirão em uma grande massa paposa, que será dada de alimento a mim depois que meus dentes apodrecerem. Tudo que sou hoje está se esvaindo aos poucos, engolido pelo tempo e pela desgraça, pelo tabaco e pela cachaça, até depois de acabarem todos os meus bons dias.

Terça-feira.

Mais uma noite sem lembranças em que as pernas não me obedecem. Talvez só mais um gole faça com que eu acorde de vez e pare com essa besteira. Tomo mais um. É, talvez não. Tento chegar até o próximo bar, mas é uma distância muito grande, então penso em chegar até a próxima rua. Ainda é uma distância muito grande, então tento dar um passo sem cair. Caio de novo e mais uma vez. Continuo caindo até chegar em casa, tento abrir a porta e a chave não entra. Não é minha casa. Merda. Tento lembrar onde estou, mas lembrar me dá dor de cabeça. Sento pra relaxar e durmo  enquanto durmo, sonho.
Sonho que estou acordado, que tudo está bem e que estou novamente em casa. É Natal e todos estão reunidos para celebrar e comer. Me oferecem um copo de bebida, mas eu não aceito. Não preciso disso, repito, eu estou bem. De repente, a atendente do bar sobe no palco e começa um discurso. Ela começa a falar e todos aplaudem. Não consigo ouvir o que ela diz. Chego mais perto, ela me olha e fala:
"Mais uma, gostoso?"
Acordo vomitando na esquina da minha rua.

Humano.

Não conheço
sossego
Não admiro
coragem
Não perdôo
verdades
ditas
em tom de
silêncio.

Não tolero
pessoas
Não reflito
passado
Não admito
maldades
feitas
em nome do
bem.

Não sou
Não fui
Não serei
Humano.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Apego.

Não se esquece das cobertas entrelaçadas em nós dois e nem das promessas de madrugada. Não esquece do chocolate quente, dos sustos e dos sorrisos. Não deixa pra lá as risadas, ficam lindas em você, e não para de procurar as qualidades em quem não tem, nunca. Já vou explicar por que estou falando isso. Você me salvou de mim e agora é a minha vez: estou salvando você de mim, querida. Vai, vai ficar na sua, vai viver sua vida. Não me procura mais, você ainda tem gente pra ajudar. Não, não vou voltar atrás. Não deixei e nunca vou deixar de pensar em você. A verdade? Eu já disse, não existe felicidade sem seus olhares ou bondade sem seu carinho. Você está deixando de ser tudo para ser mais um pouco, então deixa de ser boba. Eu sempre vou estar aqui, mas não é a minha hora. Eu volto, é claro que eu volto! Por quê? Você é vida, amor. Tem gente que precisa disso mais do que eu.

Cativo.

Teu cheiro me fitou e me possuiu como uma praga. Não sei quem tu és, mas te agradeço por tudo que já fiz, te perdoo por toda a tristeza do mundo e me curvo perante tua soberania. Sem ti, minhas noites seriam sombrias como teus olhos, meu coração seria turvo como nossas memórias juntos. Tua voz me encantou, comoveu, mas o que me dominou foi a falta dela, que escureceu minha alma, que secou minhas esperanças. Não, nem tente. Nada que disseres poderá mudar em mim o que se semeou da tua discórdia. Teu caos venerarei, e somente a ele responderei. Acordar ao teu lado é meu único motivo, seguir em frente é minha única meta. Tu, filha da peste e dama da escuridão, despertaste em mim a mais terrível das maldições, o mais inquebrável dos males: o amor.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Tenta, vai.

Corre
corre mais, vai
não adianta
não vai fugir
nunca vai de mim
não mais
nunca
desiste
eu não estou
nem aí
cala a boca
não
volta aqui
eu te amo
nos amamos
ah não tente
não tente mesmo
tudo bem, vai
não pense
sim, pode pensar
tudo bem
aqui estou eu
de novo
eu avisei.

Enfraquecer.

Só um punhado de palavras me alegra. Isso deveria ser mais desesperador, mas não é. Não é nem ao menos tentador a ponto de querer escrever mais. Sua letra é tão amável que guarda minhas lágrimas em cada ponto, cada vírgula, no espaço de cada frase. Estou morrendo, amor. Não fisicamente, mas minha essência está se esvaecendo com o tempo. Sou poeira, querida, poeira de vida. O que vou fazer com o resto da minha vida, se todo tempo perdido não sucumbe mais meu vazio existencial? Pelo contrário, ele aumenta. Cada movimento do relógio quebra parte do meu tempo e me adoece, cada passo que dou e cada movimento que faço - até mesmo ao escrever este texto - me despedaça em farelos de estagnação. Engraçado, pois a imobilidade se tornou tão fácil, e ao mesmo tempo tão sofrida... Lá vou eu usando reticências novamente. Quando vão cessar as nossas reticências, amor? Não lhe chamei por outro nome, não só por discrição (pois sei que a valoriza), e muito mais por falta de vontade. Como falta a vontade de chamar qualquer outro senão o rum, como falta qualquer ar, senão o cigarro queimando os meus pulmões. Estou caindo em desespero, por decidir permanecer assim. Eu lhe adoro, mais do que isso... Mas não posso completar a frase.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Mémoire.

Percebi, sem a ajuda de psiquiatras ou leigos - pois me afastara de todos há tempos - que a solidão seria minha ruína, e foi. Alguém alguma vez disse que ninguém percebe o quanto é sozinho até estar cercado de pessoas, mas não foi assim que aconteceu comigo.
Nunca fui, em juventude, tão ignorado quanto gostaria. Sempre estive rodeado (ou ao menos me sentia assim) por pessoas que admiravam minha falta de interesse, e consequentemente tato, para articular com desconhecidos. Devo ressaltar aqui a incrível capacidade da humanidade de ser contingente com os mais fracos. Fosse em outra época, eu seria apedrejado, queimado, violentado e até castrado, mas aqui eu fui acolhido como mascote. O problema, como saberia dizer Rochefoucauld, foi permanecer assim. "Quelque bien qu'on nous dise de nous, on ne nous apprend rien de nouveau".
Cresci, como os tolos que me veneravam, bronco, inepto e arrogante, para o azar dos que me cercavam. Os piores arrogantes são os de família rica, e eu, como mencionei antes (será que o fiz?), eu era só mais um deles. Nenhum agrado que me era dado satisfazia meus mimos, nenhum desvelo supria minha carência, nenhum afago sufocava minha dor. E como todo melodrama de novela, minha história se sucedeu em catástrofe: Aos nove, longe de entender o significado de Fim, meus pais faleceram em um acidente de carro.
Não cheguei a desenvolver as personalidades de meus criadores, pois não vejo como faze-lo. Como muitos progenitores ricos, me deixaram praticamente ao cuidado das empregadas, que mudavam de rosto antes que eu pudesse gravar-lhes os nomes. O falecimento deles, apesar da ausência, causou-me um choque tão grande quanto se estivessem sempre ao meu lado; foi aí que comecei a cultuar o isolamento.
O que aconteceu com a minha tutela até atingir a maioridade, eu não saberia dizer. Os anos passaram como meses, os meses passaram como dias, e os dias passaram como vultos. Por vidas decaí em livros; por décadas definhei, perante o sopro do vento nas cortinas, perante o barulho do relógio, perante o leve bater de asas de insetos nas paredes. Entre crises e abstinências, tranquei-me do sol e das estrelas, das árvores e das não-árvores. Meu cabelo cresceu, minha barba surgiu, minha roupa encolheu e continuei aqui, nas lembranças entorpecidas do meu passado, nesta casa amaldiçoada, nos papéis que sujo de lágrimas.
Tentei em mente, mas nunca pude - não antes de hoje - confessar a dor. As perguntas que fiz, ainda faço, agora mesmo, enquanto escrevo. Será que alguém encontrará minhas anotações ao lado de meu putrefato corpo, daqui a décadas ou mais além? Quando o fizer, estarei eu livre de minha maldição? Por quanto tempo vagarei por entre as paredes de minha mansão, chorando por dias não continuados, como hoje faço? Até lá, tais dúvidas já terão sucumbido, e junto a outras que ainda não me brotaram, mas as escrevo ainda assim, para que não me atormentem como uma confissão não dita, como fazem com os bons católicos. "La foi eté le premier péché de l'humanité, doute était la première vertu."
Se parte disso, porém, puder ser lido em alto e bom tom, e se os ventos não se encarregarem sozinhos de me levar, peço um único favor, para os que me leem: Queime qualquer evidência de mim que os anos não apagaram, lave meus prantos desse chão imundo e leve esta carta embora. Esqueça-me, e faça-me esquecido. Mate-me, não por carinho, mas por piedade. Se não o fizer, serei lembrado como o covarde que falhou em desaparecer.
E já paguei esse pecado em vida.