quarta-feira, 3 de julho de 2013

Desejo.

Por anos, quase desejei não tê-la matado.
Éramos jovens, e a pobre menina ainda não sabia viver. Só chegou a sair de casa sem permissão uma ou duas vezes antes de nos cruzarmos.
Era um parque de dia nublado quando nos encontramos. Ela bateu o olhar no meu e me olhou de cima a baixo. Senti sua hesitação, mas não desviei o rosto. Suas pupilas dilataram meus batimentos cardíacos, que há essa hora cantavam em arritmia. Em seguida, seu sorriso se abriu, revelando dentes feios e tortos, mas que me encantaram por sua sinceridade. Seus cabelos eram ondulados e vermelhos, e suas bochechas eram rosadas - mais tarde eu descobriria que a cor do rosto era consequência da minha presença.
Então, sem dizer adeus, desapareceu entre as plantas tão rápido quanto surgiu.
Foram os dois minutos mais bonitos da minha vida, e criei o hábito de procurá-la naquele mesmo lugar todos os dias.
E, como carinho de Deus, os minutos se repetiram, e continuaram se repetindo.
Nossas idades juntas não dariam mais do que três dezenas, e nossa perspicácia de mundo era a mesma de um pássaro doméstico. Não nos tocávamos e não trocávamos muitas palavras. Descobri que seu nome era Alice, e me lembraria da Alice de Lewis Carroll se não fosse pela cor de fogo de suas incontáveis mechas soltas.
Eu sabia que era um romance de criança, mas era meu primeiro romance de criança, então me deixei levar.
Um dia, com a ajuda de minha mãe, a escrevi um bilhete, que, junto com um mapa, mostrava a localização do que eu chamei de País das Maravilhas - em homenagem a Alice, obviamente. Entreguei o bilhete em mãos e a esperei na hora combinada, no local combinado.
Ela não apareceu.
Ela nunca mais apareceu.
Acho que parte de mim encarou isso como a pior rejeição já sofrida por um homem, e cheguei a acreditar que nunca seria amado de verdade por qualquer outro ser vivo.
Os fantasmas dessa ideia ainda me assombram.
Mais tarde descobriria que uma menina havia sido encontrada morta em um lago, próxima ao local indicado no mapa. De início, me recusei a acreditar que era ela e continuei indo ao parque. Ainda assim, uma ideia martelava na minha cabeça, e uma voz me lembrava do que ela havia dito em um dos dias que nos encontramos:
Eu não sei nadar.
Ao passar dos anos, a verdade ficou evidente demais para ser ignorada, e parei de procurá-la.
Nunca cheguei a confessar meu pequeno crime, mas no fundo eu sempre soube: foi meu o desejo que a matou.
Depois disso, não mais me atrevi a desejar.

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