terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A Criatura.

Ela possuía seios fartos, e sua brancura deixava transparecer algumas veias. Seu cabelo ruivo era macio e forte, e eu gostava de puxá-lo enquanto fazíamos amor. Que palhaçada essa de fazer amor! Transávamos, e transávamos pra caralho. Sua bunda era perfeita, redonda e firme, mas se mexia como nenhuma outra.
Ela era uma bailarina, e possuía a marca da minha juventude perdida. Não que eu seja tão velho assim, o cigarro e o álcool já consumiram o melhor de mim; mas não dela. Seus olhos eram de um castanho escuro que por vezes se confundiam com negro, principalmente quando trepávamos. Principalmente quando ela ficava por cima. Não tinha nome, como muitas das outras mulheres que criei. Ao contrário disso, ela possuía sardas. Foi a única mulher que já possuiu sardas dentro da minha mente. Minto. Minha professora de português do segundo ano era ruiva e gorda, mas suas sardas não eram nada comparadas às da minha amada anônima. Esta possuía algumas nos ombros, algumas nas costas e muitas nas bochechas. Eu gostava assim, assim estava perfeito.
Não sei por que nunca dei nome a ela, mas acho que nunca encontrei nada que se encaixasse com sua desenvoltura. Para um escritor, a coisa mais fácil do mundo é criar nomes. Mas eu não sou escritor porra nenhuma, eu só crio mulheres; nada sei sobre substantivos próprios.
Voltando ao assunto, acho que nunca superei a perda dessa criatura em especial. Já criei muitas outras, mas nunca iguais a ela. Não sei bem como aconteceu, mas ela simplesmente saiu de mim. Saiu da minha cabeça, saiu da minha cama, dos meus lençóis. Seu cheiro, aos poucos, foi substituído pelo aroma dos meus doces e fiéis cigarros, os sons de seus passos foi abafado pelo barulho dos carros vindo da janela. Seus toques foram ignorados, inconscientemente menosprezados, até cessarem. Aos poucos, eu desisti de procurá-la em mim, e ela desistiu de se procurar também.
Era bem tarde da noite quando a reencontrei em um copo de cerveja, num bar de esquina. Isso trouxe todas as lembranças de novo: o sexo, as conversas, sua voz... Não cheguei a mencionar a voz dela, cheguei? Era grave, mas não grave demais, e ficava mais doce quando estava chegando ao clímax. Ouví-la gemer tornava o ato muito mais puro. Nunca a ouvi falar uma palavra, mas isso não era um problema: nossa linguagem era o olhar. Eu sabia quando ela queria fazer amor e quando simplesmente queria ficar ali, parada, me fitando. Não sei o que ela pensava da própria existência, nem nunca me atrevi a perguntar. Tinha perfeita consciência de que ela não queria falar, de que as palavras pra ela eram fúteis demais para descreverem o mundo. Que se alguém deveria descrever o mundo, era o próprio mundo, e se não fazia isso era porque não deveria ser descrito. Eu sabia disso pelo seu olhar, e não só a respeitava por isso, como a admirava.
Infelizmente, a lembrança se acabou ao esvaziar o copo, e nada mais pude fazer a respeito. Obviamente ela não estaria em outra cerveja, mas isso não me impediu de continuar tentando.
Depois de chegar em casa completamente embriagado, joguei minhas roupas no chão e comecei minha orgia particular: Loiras, morenas, gordas, magras, altas, anãs. De vez em quando, eu tirava de mim mesmo todas as minhas criações e as lançava pelo quarto. Todas elas desejavam a minha atenção, todas queriam ocupar o único espaço da minha mente que oferecia algum impedimento, todas queriam se sentir menos sufocadas e tomar o lugar da minha única beldade realmente desejável, mas não poderiam. Eu me peguei pensando nela de novo, e nada mais fez sentido. Elas pararam e olharam pra mim. Uma delas, a Tiffany, - sempre gostei de nomes americanos - me perguntou o que estava acontecendo de errado, mas eu não soube responder. Eu não sabia o que me atingira, mas tinha a certeza de estar completamente fodido.
Foi então que ela apareceu. Perfeita, nua, séria. Estava puta, me olhando do canto do quarto. Eu nunca a possuí com mais alguém, e nem precisava. Nem sei se ela tinha consciência de que já haviam existido outras, pois eu mesmo não dava espaço para essa ideia quando estávamos juntos. Mesmo ali da cama, com todas as outras ao meu redor, nu e completamente bêbado, senti a sua falta, e fiquei aliviado ao vê-la. Eu sabia que, por pior que fosse a dor que me faria sentir, não seria tão ruim quanto o que eu estava fazendo a mim mesmo.
Enquanto vislumbrava seus olhos de escuridão e seu corpo nu, cada mulher do quarto foi silenciosamente se juntando aos lençóis e desaparecendo. Não sei se aconteceu aos poucos ou de uma só vez, pois não consegui desviar o olhar. Cada criação minha foi ocupando o quarto infinito de lembranças esquecidas, tempos perdidos e sonhos deixados de lado, enquanto eu me envenenava com aquela visão. Cada uma das mulheres foi deixada no meu eu jovem, sagaz, impiedoso e livre. Eu não era mais aquele homem.
Depois de todas terem ido embora, quando o quarto já ocupava seu silêncio habitual, ela caminhou até mim, com suas coxas roçando uma na outra, subiu na cama e me beijou. Não de forma ardente e desesperava, nem com a malícia disfarçada que costumava exibir, mas com lágrimas nos olhos.
Eu sabia o que aquilo significava. Aos poucos, seu corpo se afastou do meu e pude senti-la se entrelaçando com os lençóis. A cada movimento meu para alcançá-la, a cama se estendia para o infinito. A dor começou a escorrer pelo meu rosto, mas nada mais poderia ser feito. Eu estava perdendo a única mulher que amei, e teria que ver aquilo acontecer diante dos meus olhos. Eu havia realizado minha obra final e criado alguém melhor do que eu mesmo poderia ser. Deixei de ser um criador para me tornar uma criatura, mero espectador de sua perfeição.
Ela se cobriu com os lençóis e se aproximou de mim.
Adeus, ela disse.
Foi a única palavra que ela já me disse.

Um comentário: