sexta-feira, 8 de maio de 2015

Consonância.

Eu acredito - como escritor e crente na escrita - que a narração dos fatos seja mais importante do que a verdade. A verdade, tão enganadora e tendenciosa, não costuma ser mais do que um dos possíveis pontos de vista. É fato, senhoras e senhores, que alguns discordarão de mim nesse quesito. Mas quantos de vocês, dissimulados e simuladores, nunca desenvolveram a verdade a seu favor? Quantos não acrescentaram ou distorceram palavras de outro alguém pelo simples prazer de possuir uma credibilidade que não os cabe? Que não os deveria pertencer? E quantas mentiras foram contadas pelo bem das verdades que defendem, caros senhores? Eu não só os declaro hipócritas por agora como citarei, um pouco mais pra frente, um exemplo claro para defender minha tese. E espero que, ao final dessa narrativa, eu já os tenha convencido de que a mentira, assim como a verdade absoluta, é uma parte essencial para a realidade em que vivemos, e que negá-la é o modo mais fácil de se perder.
Pois bem. Certa ocasião, mais ao norte do estado, um negro foi julgado e condenado à forca pelo assassinato de um conhecido Charles Hampton. O negro, como era de costume, trabalhava para a família de Charles há muitos anos. Sua mãe foi levada à fazenda ainda cedo, onde deu luz a ele e mais um - ambos livres da corrente da escravidão, liberdade estabelecida pela lei do ventre livre.

[...]

Me desculpem, fui fumar um cigarro.

(Ad continuum...)
O negro, portanto, era um homem independente, de livre escolha e de livre pensamento. Os elos que o mantinham trabalhando para o Sr. Hampton poderiam ser puramente simbólicos - alguns diriam que havia até um certo nível de camaradagem, na medida que lhes é possível, entre um negro e um branco, caso essa história não possuísse um desfecho tão dramático.
Mas por que, em nome da bendita lógica que habita todo ser pensante, o maldito negro haveria de querer matar seu suposto camarada? Alguns afirmam - e coloco aqui este por mera curiosidade, já que não há evidência científica de que tal afirmação seja verdade - que os pardos e de cor escura possuem um cérebro menos desenvolvido do que nós, os brancos, racionais e tementes a Deus. Alguns diriam, inclusive, que tal ato cometido por esse negro em particular não possui nada de particular. Diriam que tal ação, dentre outras, representa a selvageria desses animais escuros com os quais brincamos de dominar por tanto tempo e de forma tão cruel. A essas últimas constatações, senhores, não só afirmo que existem aqueles que as fazem, como afirmo existirem os que a apoiam. A estes e àqueles, guardo-lhes somente desprezo. Não só pela racionalidade que os falta, mas por ter tido Charles Hampton duas filhas, Aurora e Lucíola, de 5 e 7 anos respectivamente, com as quais brincava da forma mais repugnante, segundo boatos que circulavam na fazenda. Ainda segundo tais boatos, o nobre Charles não apenas abusava das filhas, como fazia questão de não parar até que todos os trabalhadores pudessem ouvir os gritos sofridos das crianças. Era aí então que o Sr. Hampton, entorpecido por sexo e ópio, abria a porta do quarto em que estivesse e saía cambaleando até o depósito de bebidas para, algumas horas depois, recomeçar o processo.
Mas aí entra a tal verdade, meus caros senhores, pois boatos são apenas boatos, mas a certeza é incontestável. Eu imagino, portanto, que os hematomas encontrados em Aurora e Lucíola sejam, também, apenas boatos de hematomas, e espero que meus olhos tenham sido vítimas do meu próprio delírio ao ver, eu mesmo, as marcas roxas nos braços e pernas das meninas. Espero também que minha paranóia tenha chegado ao seu limite quando vi, nos olhos delas, uma sensação de alívio quando próximas ao corpo do pai. Eu espero, sinceramente, que os fatos tenham se distorcido na minha cabeça pois, caso contrário, em nome da verdade e da justiça, eu deixei que um homem inocente fosse levado para a forca.
Eu não venho aqui ludibria-los com minhas fantasias, muito persuadi-los à culpa por tantos crioulos maltratados. Minha escrita não é de cunho social e não acredito que venha a se tornar, portanto somente destaco um ponto aqui, dentre as enormes atrocidades narradas nesse texto:
Qual de vocês, defensores da justiça e da bondade, estaria disposto a enfrentar a forca para defender o justo?
E quantos vocês mandariam à forca pela mesma causa?

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