terça-feira, 1 de julho de 2014

Mémoire.

Percebi, sem a ajuda de psiquiatras ou leigos - pois me afastara de todos há tempos - que a solidão seria minha ruína, e foi. Alguém alguma vez disse que ninguém percebe o quanto é sozinho até estar cercado de pessoas, mas não foi assim que aconteceu comigo.
Nunca fui, em juventude, tão ignorado quanto gostaria. Sempre estive rodeado (ou ao menos me sentia assim) por pessoas que admiravam minha falta de interesse, e consequentemente tato, para articular com desconhecidos. Devo ressaltar aqui a incrível capacidade da humanidade de ser contingente com os mais fracos. Fosse em outra época, eu seria apedrejado, queimado, violentado e até castrado, mas aqui eu fui acolhido como mascote. O problema, como saberia dizer Rochefoucauld, foi permanecer assim. "Quelque bien qu'on nous dise de nous, on ne nous apprend rien de nouveau".
Cresci, como os tolos que me veneravam, bronco, inepto e arrogante, para o azar dos que me cercavam. Os piores arrogantes são os de família rica, e eu, como mencionei antes (será que o fiz?), eu era só mais um deles. Nenhum agrado que me era dado satisfazia meus mimos, nenhum desvelo supria minha carência, nenhum afago sufocava minha dor. E como todo melodrama de novela, minha história se sucedeu em catástrofe: Aos nove, longe de entender o significado de Fim, meus pais faleceram em um acidente de carro.
Não cheguei a desenvolver as personalidades de meus criadores, pois não vejo como faze-lo. Como muitos progenitores ricos, me deixaram praticamente ao cuidado das empregadas, que mudavam de rosto antes que eu pudesse gravar-lhes os nomes. O falecimento deles, apesar da ausência, causou-me um choque tão grande quanto se estivessem sempre ao meu lado; foi aí que comecei a cultuar o isolamento.
O que aconteceu com a minha tutela até atingir a maioridade, eu não saberia dizer. Os anos passaram como meses, os meses passaram como dias, e os dias passaram como vultos. Por vidas decaí em livros; por décadas definhei, perante o sopro do vento nas cortinas, perante o barulho do relógio, perante o leve bater de asas de insetos nas paredes. Entre crises e abstinências, tranquei-me do sol e das estrelas, das árvores e das não-árvores. Meu cabelo cresceu, minha barba surgiu, minha roupa encolheu e continuei aqui, nas lembranças entorpecidas do meu passado, nesta casa amaldiçoada, nos papéis que sujo de lágrimas.
Tentei em mente, mas nunca pude - não antes de hoje - confessar a dor. As perguntas que fiz, ainda faço, agora mesmo, enquanto escrevo. Será que alguém encontrará minhas anotações ao lado de meu putrefato corpo, daqui a décadas ou mais além? Quando o fizer, estarei eu livre de minha maldição? Por quanto tempo vagarei por entre as paredes de minha mansão, chorando por dias não continuados, como hoje faço? Até lá, tais dúvidas já terão sucumbido, e junto a outras que ainda não me brotaram, mas as escrevo ainda assim, para que não me atormentem como uma confissão não dita, como fazem com os bons católicos. "La foi eté le premier péché de l'humanité, doute était la première vertu."
Se parte disso, porém, puder ser lido em alto e bom tom, e se os ventos não se encarregarem sozinhos de me levar, peço um único favor, para os que me leem: Queime qualquer evidência de mim que os anos não apagaram, lave meus prantos desse chão imundo e leve esta carta embora. Esqueça-me, e faça-me esquecido. Mate-me, não por carinho, mas por piedade. Se não o fizer, serei lembrado como o covarde que falhou em desaparecer.
E já paguei esse pecado em vida.

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